A era da IA popstar: os hits, segredos e brigas da música artificial
Os fãs não foram avisados, mas o álbum mais recente de um dos cantores mais populares do Brasil mistura a voz dele e a de sua versão "robô", criada por IA (inteligência artificial).
Léo Santana precisava terminar os vocais do álbum "Paggodin", mas estava em uma turnê frenética, com cachês de até R$ 1 milhão por show. Era difícil parar e ir ao estúdio.
"Pensei: 'Será que conseguimos a voz do Léo com IA'?", conta o produtor Testa ao UOL. Ele achou uma empresa que clona vozes humanas, que pediu um banco de arquivos da voz do Léo.
Foi a base para a IA criar a versão robô do baiano.
Testa pedia para Léo mandar áudios de WhatsApp com trechos que faltavam nas faixas. A IA ouvia e reproduzia em qualidade de estúdio os versos, que foram usados em músicas como "Crush Blogueirinha".
Essa não é a única parceria de sucesso da inteligência artificial.
Hoje, a popstar mais polêmica da música não é humana. A IA está mais presente do que você imagina na música que ouvimos.
Para uns, o recurso é fascinante e parceiro. Para outros, perigoso e oportunista.
Seria o fim da criatividade na música?
João Lee, filho de Rita Lee, é entusiasta. Testa a voz artificial da mãe para lapidar tesouros como uma composição dela com Cazuza.
Autorizada ou não, a IA não para de trabalhar. Ela completa frases de Tim Maia e faz Seu Jorge virar funkeiro.
Os sucessos, disputas e segredos dessa tecnologia popstar ajudam a entender o futuro da música.
Um hit secreto e outro descarado
O primeiro hit global da IA causou frisson no TikTok e desespero na indústria.
Um falso dueto entre The Weeknd e Drake foi ouvido 10 milhões de vezes no app até as gravadoras conseguirem tirá-lo do ar, em maio de 2023. O autor nunca foi identificado.
O segundo hit foi diferente: o criador mostrou a cara, admitiu e defendeu o uso. O chileno Mauricio Bustos criou o personagem FlowGPT, um artista híbrido: meio humano, meio robô.
Ele cria versos originais e os registra em vocais de IA que imitam cantores famosos. O hit "NostalgIA" chegou ao top 20 do Spotify espanhol no fim de 2023, antes de ser banido.
"Me trataram como um pirata, um ladrão, mas sou só um jovem experimentando e levando a criatividade para outro nível", diz Mauricio ao UOL.
Bad Bunny, que teve a voz clonada por IA, disse que "NostalgIA" era "um lixo". Bad Gyal, outra estrela do reggaeton com a voz sintetizada na música, elogiou: "Amei, é muito eu".
Mauricio diz que não ganhou dinheiro pela faixa, mesmo sendo compositor dos versos. "Se os cantores [donos das vozes clonadas] quiserem ficar com todo o dinheiro, tudo bem."
O debate acabou ajudando-o, ele admite. FlowGPT virou assunto de sites de cultura da Espanha, lançou faixas originais e fez trilha de comerciais da Samsung e do KFC.
Marisa Monte pede proteção
A IA vai além da voz, o que irrita ainda mais a indústria musical.
A maior batalha é o processo de gravadoras dos EUA contra Suno e Udio, sites que criam músicas artificiais inteiras — letra, instrumentos, voz, tudo artificial.
As duas empresas admitiram ter usado todas as músicas existentes na internet para treinar as IAs. Quando criam uma faixa, na verdade, estão imitando o que músicos reais já fizeram.
"O problema é que os artistas não foram consultados sobre o uso de suas obras para a base da IA", diz Paulo Rosa, diretor da Pró-Música, associação brasileira de gravadoras.
Marisa Monte entrou na batalha. Ela participou em julho de 2024 de uma audiência do Senado sobre um projeto de lei de IA, que ainda não foi votado.
"É essencial que uma legislação acompanhe essas mudanças para proteger os direitos dos criadores e garanta um ambiente justo e equilibrado para todos", pediu Marisa.
"A mudança vai acontecer. Não queremos barrar a tecnologia, mas proteger os criadores humanos", diz Marcelo Castello Branco, diretor da União Brasileira de Compositores
Ele lembra a guerra fracassada de gravadoras contra o mp3 no início dos anos 2000. Elas ameaçavam fãs que baixavam arquivos e insistiam na venda de CDs, que já despencava.
O jogo só virou quando, em vez de brigar com a inovação, a indústria inovou: apostou no streaming, mais prático que o download, e voltou a ganhar dinheiro.
Por isso, a indústria corre para usar IA de forma controlada.
A Universal Music já fornece a artistas estrangeiros tecnologia para clonar suas próprias vozes — como Léo Santana fez no Brasil.
Poder aos produtores
Já é comum que artistas permitam que produtores parceiros usem as versões artificiais de suas vozes para trabalhar no estúdio. Assim eles lapidam ideias e agilizam produções.
"Eu vou testando: 'será que essa frase ficaria legal na voz da pessoa?", diz Wallace Vianna, o Hitmaker, que produz para Anitta, Lexa, Luisa Sonza e outros.
A IA também é usada para convencer e orientar o cantor.
"Eu produzo, gravo na minha voz, transformo na do artista e mostro a ele. Assim ele já consegue visualizar como ficaria", afirma o produtor.
"Saudade", lançada em agosto por Hitmaker e Anitta, foi feita assim. "Eu já mandei ilustrado na voz dela, ela adorou e regravou", conta.
Às vezes não dá tempo de regravar na voz real, e vai a clonada mesmo. O caso de Léo Santana não é único. Pocah deixou sua voz em IA entrar na faixa "Venenosa".
A faixa é uma parceria da ex-BBB com os MCs GW e Triz. Eles decidiram mudar o refrão de última hora, mas Pocah não tinha tempo de gravar. Entrou em cena a Pocah robô.
Floresta sintética
Alan Oliveira, 23, atendente de telemarketing de Campina Grande (PB), criou de brincadeira a cantora Makaka, com músicas e imagens 100% artificiais, feitas no Suno.
A Makaka não só fez sucesso (450 mil plays no Spotify) como gerou uma onda de cantoras-animais de IA, criadas por usuários de fóruns voltados a fãs.
Artistas como Cavalona, Giboya e Tocanna têm perfis em streaming, lançam clipes, fazem parcerias e falam mal umas da outras, como no mundo real das divas pop.
O funk também se esbalda na IA, em especial com a possibilidade de separar vocais e instrumentos de uma gravação. Assim é mais fácil remixar.
Thiago Toporcov, o DJ Topo, 24, usou esse artifício para tirar a voz de Seu Jorge da música "Quem Não Quer Sou Eu", da faixa original, de 2011.
Ele criou um arranjo de funk "dark e místico", como descreve, e levou a voz de seu Jorge ao 1º lugar do Brasil no Spotify. O cantor nunca tinha alcançado esse feito sozinho.
Toda a produção foi feita sem autorização prévia de Seu Jorge. O DJ Topo deu sorte: o cantor ouviu, curtiu, liberou o remix e agora divide os lucros — eles não revelam o valor.
DJ Topo usou o Moises, app de IA mais popular entre produtores no mundo, com 50 milhões de usuários. Ele foi criado em 2021 pelo brasileiro Geraldo Ramos.
O Moises também tem tecnologia para clonar vozes, mas Geraldo só libera a função para produtores de confiança, que não vão usar sem aval dos cantores.
Um dos usuários "premium" foi Testa, que a usou para resolver seu dilema com Léo Santana.
O futuro no passado de Rita Lee
Rita Lee (1947-2023) chegou a ouvir os testes que o filho, João, fazia com a voz dela. "Ela deu risada, achou engraçado", lembra.
João não fez só uma recriação do vocal de Rita, mas vários modelos: a voz doce-irônica dos Mutantes, a roqueira do Tutti Frutti, a pop dos anos 1980, a mais grave dos anos 2000.
"Tenho caixas e caixas de fita cassete aqui: demos, coisas inéditas, primeiras versões de músicas que as pessoas conhecem", enumera.
"Por exemplo, eu tenho uma fita de uma música inédita que ela fez com o Cazuza. Ele mandou a letra e ela fez uma demo no violão. É uma fita cassete com sujeira."
Nesse caso, ele poderia aplicar a voz de Rita dos anos 1980. "Você consegue fazer um modelo de IA para fazer restauração, que é uma coisa maravilhosa", ele defende.
João Lee elogia o trabalho de João Marcelo Bôscoli em IA com o material da mãe, Elis Regina. Mas ele ainda vai analisar tudo com calma.
"Vamos entender o que pode ser feito. Tenho conversado muito com meu pai sobre isso."
"Ela era apaixonada por tecnologia e seria a primeira pessoa a mergulhar nisso. Ia ficar louca com as possibilidades que estão vindo aí", diz João Lee.
Ele troca ideias com o DJ e produtor Gui Boratto. Uma das experiências que eles fazem é usar vozes clonadas para preencher gravações incompletas.
Gui ajudou a recuperar uma gravação ao vivo de Tim Maia, em projeto ainda não lançado.
O produtor se deparou com um problema histórico de Tim Maia: nos shows, o cantor costumava deixar versos pela metade, por desleixo ou para os fãs cantarem.
"Achamos a voz dele na melhor qualidade disponível para fazer o modelo e substituir", afirma. Assim eles incluem versos que Tim deixou para trás.
Parceira ou exterminadora da arte?
Um aliado improvável da tecnologia é Odair José, 76. "Ela é inevitável. O ser humano foi feito para criar com a inteligência artificial."
Foi o que ele fez em seu 39º álbum, "Seres Humanos (e a Inteligência Artificial)". Odair cantou em dueto com uma voz de IA que ele classifica como "genial".
Se no hit "Uma Vida Só", de 1973, ele pedia "pare de tomar a pílula", o recado agora é oposto: use a IA. Ele se sente mais criativo na parceria.
"O impacto é muito maior que o da pílula anticoncepcional. É o lance do século", diz o compositor.
O produtor Felipe Vassão, que trabalhou com Emicida e Elza Soares, não é tão otimista.
"Acho que a IA vai nadar de braçada na música mais funcional. Para o uso ligeiro e raso, ela vai bombar."
A inteligência artificial só recicla o que foi feito por humanos, diz ele. "A gente terá só essas máquinas que reproduzem clichês. Uma hora não vai ter mais o que copiar."
Ele se preocupa com a falta de incentivo a ideias originais. "Cadê o fomento para malucos fazerem sons doidos? Daqui a pouco a gente não vai ter humano fazendo arte."
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