Do Rio para zona leste de SP: Cartola teve bar na Vila Formosa

Rolando o feed por aí, você já pode ter cruzado com uma foto intrigante de Cartola. Nela, o poeta aparece apoiado em um violão em frente ao Zicartola, mas o que chama atenção é que o cenário não tem nada a ver com a fachada do bar que fez história no centro do Rio de Janeiro na década de 1960.

A polêmica não é fruto de montagem nem produto da inteligência artificial, o registro remonta a uma fase da vida de Cartola e de dona Zica que se passou na zona leste de São Paulo, no bairro da Vila Formosa.

Cartola e o produtor musical Pelão, responsável por levar o sambista para o estúdio em 1974
Cartola e o produtor musical Pelão, responsável por levar o sambista para o estúdio em 1974 Imagem: Divulgação/Garoa Livros

Em 1974, o casal de honra da Mangueira estava constantemente na terra da garoa para gravar o primeiro disco solo de Cartola, que só foi parar em um estúdio aos 65 anos, graças a Pelão, apelido do produtor musical João Carlos Botezelli.

Naquela época, o samba do morro ainda sofria discriminação. E as gravadoras não viam potencial em investir em nomes já conhecidos como Cartola, que apesar de não ter um álbum individual já tinha canções de sucesso interpretadas por outros artistas.

O primeiro álbum de Cartola, lançado em 1974
O primeiro álbum de Cartola, lançado em 1974 Imagem: Junior Lago/UOL

O lance na década de 1970 era apostar em nomes jovens que estivessem mais próximos do que bombava nos Estados Unidos. Conta a história que para convencer a gravadora Marcus Pereira a investir em Cartola, Pelão se ajoelhou aos pés de um dos sócios. Meses depois, o disco Cartola —homônimo ao nome do cantor— se tornou um dos mais vendidos de 1974.

Descrito como uma pessoa tímida e avessa a hotéis, em São Paulo o poeta preferia se hospedar na casa dos amigos Joca Chagas, Marília Chagas e seus 5 filhos. Localizada na rua Pretoria, na Vila Formosa, a casa simples oferecia o que Cartola considerada fundamental: uma cozinha às ordens de Dona Zica. "Ele não abria mão dos temperos e do cafezinho que só a tia Zica sabia fazer", conta Marcelo, segundo filho de Joca e Marília, casal já falecido.

A amizade dos pais de Marcelo com Cartola e dona Zica era antiga, vinha dos tempos em que Joca morava no Morro da Mangueira. Depois que conheceu Marília, ele se casou e veio morar em São Paulo, mas mantinha contato frequente com dona Zica, que o ajudou quando ele chegou órfão ao Rio na década de 1940.

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A tia Zica sempre foi muito preocupada com o social, ela não deixava os meninos do morro desamparados, foi assim que ela ajudou meu pai. Marcelo Chagas

O sucesso do samba do morro na terra da garoa

Da esquerda para a direita: Marcelo, Marília, Joca e dona Zica encostados no carro Itamaraty da família Chagas
Da esquerda para a direita: Marcelo, Marília, Joca e dona Zica encostados no carro Itamaraty da família Chagas Imagem: Arquivo pessoal

Foi na cozinha de dona Marília, enquanto ela e dona Zica preparavam o almoço que surgiu a ideia de reabrir o Zicartola a poucos metros dali, em um salão vago em cima de uma padaria. A história é que Cartola topou a proposta na hora.

A iniciativa ganhou força quando o sr. Aires, dono da padaria e da sobreloja, não quis cobrar para alugar o espaço para o Cartola, afinal era o Cartola. E assim, em dezembro de 1974, quando a rua Guaxupé ainda era de terra, São Paulo ganhou sua versão do Zicartola. Ali, Nelson Cavaquinho, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus e outros músicos notórios tocaram com artistas locais e viram o sol raiar enquanto o samba comia solto.

Marcelo Chagas, 63 anos, filho do casal Joca e Marília sócios do bar de Cartola e dona Zica
Marcelo Chagas, 63 anos, filho do casal Joca e Marília sócios do bar de Cartola e dona Zica Imagem: Beá Jordan
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Marcelo, que na época tinha 14 anos, conta que o lugar lotava de carros e atraía muitos universitários e gente que percorria quilômetros para ouvir o samba do morro. Para ele, o sucesso do disco de Cartola, lançado em março de 1974, fez o som ecoar e trouxe para o sambista um público novo.

Mas a rotina para fazer o Zicartola acontecer aos finais de semana era puxada. Marcelo relembra que Cartola e dona Zica embarcavam no Expresso de Prata no Rio na quinta-feira à noite para estarem sexta-feira de manhã em São Paulo. No fim do domingo eles voltavam para o Rio.

Eles tinham muitos compromissos e com o sucesso do disco a agenda ficou ainda mais apertada, não tinham como morar aqui, mas em São Paulo meu pai fazia questão de levá-los onde fossem com seu Itamaraty. Marcelo

Cartola e Dona Zica tocaram o bar ao lado dos sócios Joca e Marília até 1976, mas a distância e os compromissos que só aumentaram depois do sucesso do primeiro álbum tornaram o Zicartola paulistano impraticável. Hoje o endereço carrega uma placa que não deixa os moradores esquecerem que aquela esquina tem história e, apesar das constantes ameaças da especulação imobiliária na região, o prédio segue firme e forte com uma padaria onde ainda é possível encontrar antigos frequentadores do Zicartola.

Vai lá, vai lá

Releitura do retrato de Cartola do artista Rafael Roque no Centro Cultural da Vila Formosa
Releitura do retrato de Cartola do artista Rafael Roque no Centro Cultural da Vila Formosa Imagem: Beá Jordan / UOL
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Para não deixar a memória se apagar, o Centro Cultural da Vila Formosa inaugurou mais um capítulo da história do Zicartola no bairro. A fachada do equipamento público, construído em 1965 para ser a primeira biblioteca pública da região, ganhou uma releitura da famosa fotografia do Cartola.

A obra do artista Rafael Roque é parte da instalação Luzes Formosa, uma galeria a céu aberto, que reúne quadros de diferentes artistas do bairro para revitalizar o complexo cultural que abriga um teatro, biblioteca, cursos e atividades gratuitas para pessoas de todas as idades.

Agora, quem passa pela avenida Renata, na altura do número 163, confere de pertinho o trabalho dos artistas Tami Lemos, Soberana Ziza, Frosa Arte, Mes 3 Gamex, Rafael Roque, André Mogle e Lukin. A exposição é gratuita e ficará disponível por um ano.

Galeria aberta Luzes Formosa
Onde:
Centro Cultural da Vila Formosa, na avenida Renata, 163, Vila Formosa, São Paulo
Quando: Saiba mais sobre o trabalho de cada artista no CCF, que está aberto de terça a sábado, das 9h às 21h, e aos domingos, das 9h às 20h.
Quanto: Gratuito

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