Samba, filhos e luta contra fascismo tropical: D2 não quer saber de sossego
"Ainda tenho uma veia punk, essa coisa contestadora ficou em mim."
É assim que Marcelo D2 relaciona o moleque de 20 anos, que usava coturno e jaqueta de couro no calor carioca, ao homem de 57 anos, pai de cinco filhos e que tem sucesso, mas não quer sossego.
Ele é, de longe, o que segue mais inquieto entre os líderes das bandas que renovaram o rock brasileiro no início dos anos 1990 - Raimundos, Skank, O Rappa e o seu Planet Hemp.
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D2 poderia surfar na onda do rap com marra carioca, que ele ajudou a formatar, e hoje está mais pop e comercial do que nunca. Mas ele foi para outro lado, para desespero do empresário.
O músico partiu para outra provocação: botar no samba o grave eletrônico do hip hop. É essa a base do novo álbum, "Manual Prático do Novo Samba Tradicional".
A primeira fusão musical da carreira, de punk rock e rap no Planet Hemp, foi a trilha sonora de um debate nacional sobre liberdade de expressão nos anos 1990.
O ápice foi a prisão dos músicos por apologia ao uso de drogas, por conta das letras sobre maconha, em 1997.
Hoje D2 vê essa tal liberdade de expressão como um termo "tomado de assalto pelo fascismo tropical", como desculpa para "mentir e xingar sem ser punido".
"Aí joga a gente para o lado do STF. Eu não quero estar do lado do Alexandre de Moraes, mas, porra... [risos]. A gente acaba tendo que ficar", lamenta.
Ele falou ao UOL na Ocupação Iboru, espaço no centro do Rio com instalações e eventos que fazem parte dos projetos dos últimos álbuns, todos em parceria com a esposa, a diretora de filmes Luiza Machado, 37.
A gerente da ocupação é a artista plástica Lourdes Peixoto, 24, filha de D2. Eles trocam ideia sobre samba e grafite, e ele passa a lição maior do punk: "Faça você mesmo".
Leia abaixo os principais trechos da conversa com D2:
O "Novo Samba Tradicional" bota psicodelia eletrônica no Arlindo Cruz e funk no Almir Guineto. Por que desafiar a tradição?
Desafiar a tradição é uma maneira de não deixar o legado morrer. Se for ver, o Cacique de Ramos [bloco carnavalesco da zona norte carioca que transformou a roda de samba] desafiou a tradição. Assim como a turma do Estácio lá nos anos 1920, colocando a música de terreiro no rádio.
O estalo que me trouxe aqui foi o do grave. Porque vi o quanto essa música pop hoje usa o grave. Pensei: "Peraí, esse grave é da minha cultura, do hip hop".
O grave eletrônico do [DJ pioneiro do rap] Afrika Bambaataa, do final dos anos 1970, agora reverbera na música pop inteira. Falei: "Vou usar isso no samba".
Achar isso me deu uma coisa que eu não tinha há 15, 20 anos. Tive esses estalos na minha carreira: o Planet Hemp e a mistura do rap com samba de 1998, que bombou em 2003.
Depois fiquei um bom tempo vivendo dessa coisa e tentando achar algo novo. Em 2016 fui escrever roteiro e dirigir filme.
Eu estava quase abandonando a música. Porque estava há muito tempo fazendo a mesma coisa. Agora vem a coisa do grave no samba, e parece que comecei uma carreira nova [a partir de "Iboru", de 2023].
O meu papel é desbravar os caminhos e questionar. Mais do que falar: "Ah, o rap de hoje não presta", é fazer outra coisa.
Você poderia só colher os louros. Ainda mais com o sucesso do rap carioca, que você ajudou a gerar. Mas parece que você sempre quer fazer o mais difícil. Por quê?
Meu empresário [Marcos Passarini] fala exatamente isso. "Pô, no melhor momento do rap você vai cantar samba". [Risos].
É porque eu me vejo como um vanguardista. Não sou o cara que vai estar na onda do momento. Sou o cara que vai fazer a marola lá do começo para a onda da frente.
E como era, lá no começo, ser um jovem punk?
Ser punk no Rio era muito difícil. Coturno e jaqueta de couro. Meu pai falava: "Como você aguenta?" [risos].
Tinha um viés político. Mais do que só a música. No fim dos anos 1980 e começo dos 1990 a gente tinha acabado de sair da ditadura. A ideia de escrever sobre o cotidiano e o abuso de poder sempre foi importante para mim, porque fui cria disso.
O punk rock era o lugar onde se fazia isso. Na época, a MPB falava tudo nas entrelinhas. E o punk rock vem xingando todo mundo, até Papai Noel. Nem aí pra nada, botando o dedo na ferida. Foi um impacto muito grande. Pensei: "É desse jeito que eu quero viver".
Depois veio o rap, que também tinha sua função, era muito mais "nós" do que "eu".
Nessa época você queria ter feito faculdade?
Eu gostaria de ter feito faculdade de arquitetura, de que gosto pra caramba. Mas isso nem passou na minha cabeça. Eu já tinha filho quando terminei o estudo.
Era um arrebento de vida, tudo atrapalhado. Tinha abuso de drogas, questões mal resolvidas comigo mesmo, de autoestima, de me sentir feio, excluído.
Foi o rap que me levantou e falou: mano, levanta a cabeça e vai lá. Esse mundo não é só deles, é teu também.
Você ainda é punk, aos 57?
As pessoas vão me matar se eu falar que sim. Acho que ainda tenho uma veia punk, que é a coisa contestadora que ficou em mim. O melhor lugar em que eu escrevo ainda é esse. Como esse disco do Planet Hemp ["Jardineiros", de 2022]: "Distopia", "Taca Fogo".
O punk rock ainda vive dentro de mim nessa coisa do "do it yourself" [faça você mesmo, lema do movimento punk]. Olha esse lugar aqui [a ocupação].
Ainda continuo fazendo fanzine. E construindo as coisas com minhas mãos, sem esperar ninguém. Nesse lugar, o punk ainda vive em mim.
Como foi acender um debate nacional sobre liberdade de expressão nos anos 1990?
Vou começar falando dessa loucura que é, hoje, o "fascismo tropical" ter tomado de assalto o termo "liberdade de expressão". E aí joga a gente para o lado do STF. Eu não quero estar do lado do Alexandre de Moraes, mas, porra... [risos]. A gente acaba tendo que ficar.
Os caras acham que liberdade de expressão é falar qualquer coisa.
Mas essa liberdade de expressão que se fala hoje por essa galera conservadora, eles querem o direito de poder atacar, mentir e xingar qualquer pessoa sem serem punidos por isso.
A gente saiu de uma ditadura que não acabou, foi desmanchando. Nos anos 1990 ainda tinha. Quando jovem minha cabeça pirava nisso. Eu queria muito mexer nesse vespeiro.
Quando a gente resolveu falar de maconha, não era porque era "maconheiro hippie", mas o contrário. Era porque a gente queria esse debate e sabia que a palavra "maconha" causava muito desconforto nessa galera conservadora, e ainda causa.
Para esses filhotes da ditadura, se você fala de homossexualidade, drogas, direito dos negros etc, ainda mexe muito.
Na verdade, a gente queria falar sobre os problemas sociais que a guerra às drogas traz.
Mas a coisa da liberdade de expressão não foi uma sacada no começo do Planet Hemp. Só quando a gente começou a ser perseguido, fizemos "Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Para" e percebemos o que a gente não pode falar nesse país.
Hoje você acha que a prisão de vocês em 1997 foi uma comédia ou um drama?
Foi tragicômica. A gente estava preso e ria. Os outros presos falavam: "Tá rindo do quê? Você tá preso. Para de rir". E a gente de madrugada dando risada. Os caras ficavam malucos com a gente.
Porque era engraçado rir desses velhos caquéticos defendendo aposentadoria para a família inteira, militar mamando nas tetas do governo, como eles falavam.
Mas foi pesado para a gente. Tanto que a banda acabou logo depois.
A ideia de ficar na cadeia foi assustadora. A gente ficou oito dias. Pode parecer pouco, mas é terrível. Porque a gente sofreu muita pressão.
Os policiais colocaram pressão diária na gente. De acordar e ter três, quatro policiais vendo você dormir. Eu dizia: "Que porra é essa?".
E pressão psicológica, de falarem: "Você vai apodrecer aqui na cadeia". Teve um tratamento super especial.
Após 25 anos, você se sente vingado pela visão que se tem da maconha hoje?
Qualquer pessoa esclarecida já sabia que maconha não fazia mal naquela época. Eu não me sinto vingado porque acho que ainda tem muito preto e pobre apanhando, sendo preso e sofrendo violência por conta disso.
Ainda tem uma máscara. O Brasil ainda não aceitou que a maconha não faz mal, e que, pelo contrário, faz bem. A Europa inteira, EUA e Canadá já aceitaram. Aqui ainda se usa como desculpa para matar preto e pobre, principalmente jovens.
Eu só me sentiria vingado quando a gente tivesse uma lei de reparação, que todo mundo que vendesse maconha fosse solto. Que todos esses jovens tivessem prioridade e subsídio para trabalhar no mercado do CBD, THC, para recuperar essas vidas perdidas.
Tem moleque que está há dez, 15 anos na cadeia porque vendeu maconha. Só vou sentir esse gostinho lá na frente, ou nunca. Porque talvez o sistema nunca vá dar essa reparação.
Mas já ficaria muito feliz se legalizasse logo essa porra. Não é mais uma questão de "se", mas "quando". Porque o mundo todo vai legalizar.
Como avalia hoje sua relação com as drogas além da maconha?
Nunca tive problema com as drogas. Nunca fui um usuário de precisar ir para clínica, se internar. E já usei todas, todas. E por muitos anos. Hoje em dia sou muito mais leve. Estou em um lugar mais tranquilo.
Mas sei o quanto é difícil, principalmente no ambiente em que vivi, de rockstar. Isso me causou um certo dano. Vi muitos amigos se afundarem no álcool e na cocaína.
Tive que controlar minha vida muito cedo. Então minha relação com as drogas foi de ter que controlar também a fartura que você tem quando é um rockstar.
Acho que, do uso de todas essas aí, a que causa mais dano realmente, por experiência própria e de ver também em volta de mim, é a cocaína.
Em 2018 você discutiu com Bolsonaro no Twitter. Como aquela eleição te afetou?
Ela foi um divisor de água na minha vida. Afastei muita gente da minha vida, troquei de empresário [rompeu com Marcelo Lobato, após 27 anos].
Você olha e fala: essa seria a galera que me entregaria para a tortura.
Sem contar os ataques. Fui muito atacado, isso adoece. Esse gabinete do ódio... foi tenso.
O que sente vendo roqueiros da sua geração irem para outro lado?
Você vai no perfil da 89, a rádio rock, e como tem roqueiro reaça, cara. Isso é inacreditável, mas é essa classe média que é muito roqueira. A classe média medíocre brasileira.
Esse patriota da CBF, que é o órgão mais corrupto que tem no Brasil, vestir camisa e ir para Miami é muito simbólico. É um patriota que odeia o Nordeste, que acha que o Sul é mais limpo porque é dos brancos, dos europeus.
Essa galera que se diz contra a criminalidade acha normal fazer um plano para matar o presidente e o vice. Acha que tem diferença do PCC para essa ala dos militares que planejam um crime desses. Não tem diálogo, é só uma coisa hipócrita.