Cure, Nick Cave, Kim Gordon: veteranos do alternativo ocupam listas de 2024
Fabio Bridges
Colaboração para o TOCA
09/01/2025 15h52
O período entre dezembro e janeiro é um prato cheio para os viciados em listas, rankings e afins.
Quando o assunto é música, uma infinidade de sites, blogs, portais e revistas abastecem aficionados mundo afora com seus favoritos do ano - que geram discussões ferrenhas e também funcionam como uma ótima maneira de descobrir novidades. O TOCA, por exemplo, fez o seu próprio ranking, só com os destaques nacionais.
O que houve de incomum - ou um tanto surpreendente - no ano que acabou foi que, dividindo espaço com nomes como Charli XCX, Fontaines D.C., Billie Eilish, xaviersobased e outros nem tão novos (Beyoncé, Kendrick Lamar), figurou nos rankings artistas que já faziam música quando alguns dos citados acima nem eram nascidos. Talvez nem seus pais…
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Nesta lista, o TOCA destrincha o que de melhor essa velha guarda lançou em 2024:
The Cure e as canções do mundo perdido
Robert Smith, o mítico vocalista do The Cure, e Nick Cave, cronista dos lados mais obscuros da alma humana, são duas figuras que há décadas permeiam o imaginário de fãs de música com a veia trevosa saltada.
Oficialmente na ativa desde a metade da década de 1970, ambos possuem um currículo pra lá de invejável, com álbuns e canções que atravessaram gerações, influenciaram e seguem influenciando pirralhos espinhentos a montar suas próprias bandas.
Difícil imaginar que os dois meninos que davam seus primeiros passos musicais em 1973 (!!!) são hoje os sessentões cujos discos aparecem por aqui - e em listas de publicações que vão da Rolling Stone a Mojo e Spin.
"Songs of The Lost World", décimo quarto álbum do Cure, saiu em 1° de novembro de 2024, 16 anos após o último lançamento dos góticos ingleses, e na sequência de uma série de ações de marketing, como a criação de um site especial para divulgação e o envio por e-mail da lista de músicas.
O disco vendeu mais de 50 mil cópias na primeira semana, chegando ao topo das paradas no Reino Unido, França, Bélgica, Holanda e Alemanha, um feito em tempos de streaming e por um trabalho que nem de longe lembra momentos mais pop e felizes do grupo como "In Between Days" e "Friday I'm in Love".
Suas oito canções já estavam praticamente prontas desde 2019, e seu clima soturno e melancólico é facilmente justificável: Bob Smith as compôs durante o luto pela perda de sua mãe, pai e irmão.
Com longas introduções, ritmo lento e letras que falam sobre mortalidade, impermanência e perdas, "Songs of The Lost World" remete ao clássico "Disintegration", e não à toa é o melhor - e mais triste - álbum do Cure desde então, podendo ser encaixado como um quarto elemento na 'trilogia da depressão', formada pelos discos "Pornography" (1982), "Disintegration" (1989) e "Blood Flowers" (2000).
Um álbum maravilhoso, mas não recomendado em momentos de fragilidade emocional.
Nick Cave e o deus selvagem
Já "Wild God", de Nick Cave, chega quase como um renascimento do músico australiano.
O sujeito que desde os primeiros anos com o Birthday Party retratou aspectos sombrios da vida (basta lembrar de seu disco de 1996, chamado "Murder Ballads" - baladas de assassinato - onde está seu maior sucesso, o dueto com Kylie Minogue na trágica "Where The Wild Roses Grow") viveu por duas vezes o que nenhum pai merece, a morte de seus filhos.
Em 2015 ele perdeu prematuramente Arthur, então com apenas 15 anos, e fez dessa dor os álbuns "Skeleton Tree" (2016) ,"Ghosteen" (2018) e o documentário "One More Time With Feeling" (também de 2016); sete anos depois foi a vez dele dizer adeus a Jethro Lazenby, um de seus primogênitos, aos 31 anos de idade.
Com mais esse baque esperava-se que "Wild God" seguisse a mesma trilha dos dois trabalhos mencionados, com Cave dando vazão a sua tristeza e mantendo o tom confessional e minimalista de ambos, mas aqui ele pôs novamente em evidência sua banda, a Bad Seeds, dando musculatura e grandiosidade às 10 faixas do disco.
Se o álbum não soa feliz - estranho seria se soasse, afinal estamos falando de Nick Cave -, pelo menos traz de volta o homem que, como poucos, sempre soube transformar dramas humanos em canções épicas.
Primal Scream e Jesus and Mary Chain: mesma origem, caminhos diferentes
Era uma vez na Escócia um sujeito chamado Bobby Gillespie, amigo de escola de um outro sujeito chamado Allan McGee, os dois apaixonados por Byrds e agitadores da cena musical de Glasgow.
O primeiro com sua banda, o Primal Scream, o segundo através de seu selo recém lançado, a Creation Records.
Enquanto isso em East Kilbride, outra cidade escocesa, os irmãos William e Jim Reid Reid gravavam suas primeiras fitas demo misturando Ramones, Velvet Underground, Ronettes (sim, as de "Be My Baby") e microfonia sob o nome Jesus and Mary Chain.
Quis o destino - ou a geografia local - que uma dessas fitas caísse nas mãos de Gillespie, que pirou e a levou a seu amigo-chefe Mcgee; assim os Mary Chain se juntavam ao Primal Scream no cast da Creation e uma parte importante da história do rock alternativo dos anos 80 em diante começava a ser escrita. Pula para 2024.
Desde que largou as baquetas do Jesus - que assumiu temporariamente no começo da banda - para se dedicar exclusivamente ao seu grupo primordial, Bobby se tornou uma figura icônica.
Com o Primal Scream, ele lançou discos ótimos, bons, medianos e ruins, sendo "Scremadelica", de 1991, seu momento angular. De lá pra cá, a banda seguiu oscilando e quando ninguém (ou ao menos eu) esperava que dessa cartola saísse outro coelho, eis que os Screams, agora tendo como núcleo Gillespie e Andrew Innes, chamaram o ex-DJ e produtor David Holmes para trabalharem em "Come Ahead", décimo segundo álbum de sua carreira — e, sim, seu retorno à boa e velha forma.
Quando os primeiros singles do disco pipocaram na rede a esperança de que viesse na sequência mais um grande trabalho dos escoceses se acendeu, e em novembro último, quando o pacote completo com suas 11 canções finalmente chegou, essa esperança deu lugar à felicidade do fã confesso que sou.
"Come Ahead" é funk e soul, disco e house, psicodelia e punk (nas letras), feito de cabo a rabo pra dançar e prestar atenção às mensagens espiritualizadas e políticas cantadas pelo 'garoto do cortiço' Bobby G. sobre a colcha de grooves poderosos costurada por Holmes (encontre o pequeno sample de "Errare Humanum Est" e ganhe um doce).
Um álbum pra ser escutado com corpo, mente e alma.
E os irmãos Reid? Ah, os irmãos Reid, os caras que em 1985 deram ao mundo a bíblia do barulho chamada "Psychocandy", que em 40 longos anos de estrada usaram tantas drogas, brigaram entre si e arrumaram tantas tretas que fazem os irmãos Gallagher parecerem personagens de desenho infantil.
Quem diria que conseguiriam conviver entre si pra gravar mais um disco? Pois conseguiram.
"Glasgow Eyes", oitavo trabalho de estúdio do Jesus and Mary Chain, foi lançado em maio pelo selo inglês Fuzz Club, que curiosamente tem em seu cast uma infinidade de filhos bastardos dos Reid que tentam imitá-los, na maioria dos casos em vão.
O álbum chegou à sétima posição nas paradas britânicas, e divide opiniões entre os fervorosos fãs da banda, o que em partes é justificável. Pra quem (ainda) esperava deles músicas como "Just Like Honey", "April Skies" ou "Reverence", talvez seja penoso ouvir "Mediterranean X Film", "Discotheque" e "Silver Strings".
Por outro lado, e com uma audição menos religiosa, é incrível ver uma banda com tanta estrada mudando seu modus operandi, abraçando influências que vão do krautrock alemão e seus sintetizadores ao jazz e à psicodelia suja que eles mesmos ajudaram a criar. Eu ouvi um amém?
A volta das deusas Kim
Gordon e Deal, as duas Kim que ajudaram a mudar a cara do rock dos anos 1980 e influenciaram muitas garotas a empunhar um instrumento e montar uma banda, estão de volta.
Uma começou em Nova Iorque no final da década de 1970, a outra em Boston na metade da década seguinte.
Ambas originalmente baixistas e vocalistas, coom personalidades fortes, presenças marcantes e sem as quais não haveria três das bandas mais importantes do underground (e além dele) norte americano: Sonic Youth, Pixies e Breeders. Kim Gordon e Kim Deal, duas deusas, enfim.
Gordon fundou o Sonic Youth com o futuro marido Thurston Moore por volta de 1979, em meio à cena musical de Nova York, conhecida como 'no wave'. De lá levaram as experimentações, dissonâncias e barulhos, que com o tempo foram sendo incorporadas à estruturas mais básicas e harmônicas, criando uma sonoridade única, que ao menos desde o álbum "Daydream Nation" (de 1987) se tornou escola para um sem número de outras bandas mundo afora.
Tudo corria aparentemente bem até que Kim descobriu uma traição de seu companheiro, e em 2011 pôs fim ao casamento e, consequentemente, ao Sonic Youth (o último show foi no Brasil, em novembro de 2011). Fim de uma história, começo de outras.
Ms. John Murphy, ou Kim Deal para a maioria, se juntou aos Pixies após ler um anúncio colocado num jornal local por Black Francis e Joey Santiago procurando 'baixista que goste de Peter, Paul & Mary e Hüsker Dü' para formar uma banda.
Por uma dessas maravilhosas coincidências, uma de suas fitas demo caiu nas mãos de Ivo Russell - dono da gravadora britânica 4AD - e então os elfos passaram rapidamente de queridinhos das college radios estadunidenses para queridinhos do indie rock global, especialmente após seu segundo disco, "Doolittle" (de 1989).
A partir dali o caldo entornou, com Francis 'apagando' cada vez mais a doce voz de Deal (e assim, graças aos deuses da música, lhe dando espaço para formar as Breeders). Nos dois álbuns seguintes do 'Pixies' mal se escuta sua voz, as brigas rolavam soltas, até que em 1993 o grupo se separou, para depois voltar à ativa - primeiro com e depois sem a presença de Kim.
Mas vamos ao que interessa, os novos álbuns dessas mulheres maravilhosas...
"The Collective" não é o primeiro trabalho de Kim Gordon após o fim do Sonic Youth, mas é a primeira amostra de onde ela realmente quer e pode chegar. "Bye Bye", a faixa de abertura, é algo distante anos-luz de "Kool Thing", "Bull in The Heather", "Star Power" ou qualquer outra canção do Sonic Youth guiada por sua voz.
Os barulhos estão lá, mas os beats - cortesias do produtor Justin Raisen - deixam claro que ela está em outra, que agora quer outras linguagens para sua música. Trap, dub, trip-hop, rap e a parafernália eletrônica pesada do industrial se mesclam a dissonâncias e distorções servindo como cama para as letras politizadas de Kim, inspiradas em parte no livro "The Candy House" de Jennifer Egan. Um álbum desafiador para alguns fãs de longa data, mas sob medida para as novas gerações a descobrirem.
Assim como sua xará Gordon, mas de forma menos radical, Kim Deal surpreendeu com a chegada de seu primeiro disco solo, "Nobody Loves You More". Não por se embrenhar em terrenos eletrônicos, mas por compor seu trabalho a grosso modo mais intimista, delicado e confessional até hoje, principalmente se comparado ao que fez em suas bandas anteriores (Breeders e Amps).
Há canções que fogem deste clima tranquilo, como "Crystal Breath" - boa pra pistas como a clássica "Cannonball" - e "Disobedience", mas um trompete aqui, celos ali, baladas de coração partido e um bocado de country music dão ao álbum seu ar emotivo. Junte aí a voz de Kim, que nada mudou desde "Gigantic", e a beleza do quadro está completa.
Que em 2025 outros artistas 'da velha guarda' sigam se renovando e encantando, afinal se boa música não tem prazo de validade, estes lançamentos mostram que alguns de seus criadores também não o tem.