Veio para ficar

Em 2024, trap passa a dividir com funk os corações de jovens da favela e do asfalto no Rio de Janeiro

Juliana Gonçalves e Bruno Machado Colaboração para Toca, no Rio Wagner Meier/Getty Images
Divulgação Rock in Rio
Fãs de trap copiam visual dos ídolos em palco dedicado ao estilo no Rock in Rio 2024

"Eu escuto trap direto. Tá na veia. Mas se tivesse rolando funk agora tava todo mundo soltinho igual arroz. Os dois andam lado a lado. Têm a mesma origem", foi essa a resposta de Giovanna Sousa, 17, quando questionada se preferia trap ou funk, no Mainstreet Festival - que aconteceu no final de novembro, na Apoteose, no Rio de Janeiro.

Também no evento, Ana Clara Santos, 22, defendeu que não dá para escolher um ou outro: "Gosto muito dos dois. Eu acho que os dois gêneros são criados na periferia. Agora o hip hop se expandiu com o trap e a mistura fez colar na galera".

O trap foi o estilo musical mais ouvido do Rio de Janeiro no último ano e é quase uma unanimidade entre os mais jovens —seja na favela ou nas áreas nobres da cidade. Em 2024, teve ainda mais notoriedade em um crescimento exponencial ganhando até um Dia do Trap no Rock in Rio, chamando atenção de outros públicos, curiosos com a empolgação dos fãs e também com a pouca idade deles —que durante o festival foram apelidados de Enzos.

Houve também um aumento de eventos dedicados ao gênero —como Rap Festival, que acompanhamos em junho no Complexo do Alemão, com lotação máxima.

Barry Brecheisen/Getty Images
O americano Travis Scott

O que é trap

O trap é um subgênero do rap que conta com uma pegada mais eletrônica, com uso de autotune para dar corpo às músicas e um flow menos arrastado, com batidas entre 90 e 140 bpm (batidas por minuto). O estilo surgiu nos anos 2000 nos Estados Unidos e se popularizou na década seguinte com nomes como trio Migos, Chief Keef e Travis Scott.

No Brasil, chega na mesma época e não há um consenso do marco inicial por aqui. Entre as hipóteses estão o lançamento da música "Fiat 1995", em 2015, de Raffa Moreira, ou a criação da festa Red Room de Naio Rezende, no Espírito Santo.

Hoje, o trap é o gênero que faz frente ao sertanejo no Brasil, mas ainda é um estilo musical novo e tem espaço para crescer.

Reprodução Instagram @chefin23
O trapper Chefin

Trap de cria

Durante a pandemia, aconteceu um boom com apoio da internet. "Muitos estouraram na época da quarentena sem fazer nenhum show. Os caras produziam música em casa e jogavam na internet. O Chefin é um desses, tá ligado? Quando as coisas normalizaram, eles já eram atração de grandes festivais. Hoje, eles fazem show o tempo todo, estão em boates na Barra da Tijuca e em bailes em favelas da Zona Norte", explica o comunicador Bruno Sousa, que acompanha a cena desde o começo.

No Rio de Janeiro, o gênero ganha outras características com forte influência do funk carioca. Além de falar da ostentação, sexo e lifestyle, no Rio as letras narram a vivência na favela e trazem símbolos locais como, por exemplo, menções a cortes de cabelos específicos das comunidades cariocas, falam de times de futebol do Rio e, também, da criminalidade —o chamado real trap RJ ou o trap de cria, que fala da vida real.

Divulgação
MC Poze do Rodo

Do funk ao trap

Ao mesmo tempo, que o trap aborda temáticas muito similares às do funk, ele atinge um patamar mais comercial e aceitável no asfalto.

Alguns dos principais nomes da cena migraram do funk para o trap nos últimos anos, como Mc Maneirinho —que é compositor de hits no funk, como "Aquecimento das Maravilhas" e "Chefe é Chefe Né Pai"—, e MC Poze do Rodo e Mc Cabelinho —que eram do funk proibidão.

Para Naomi Nicolau, apresentadora do diaspocast —podcast sobre a cena rap, o movimento dos MCs do funk para o trap acontece por uma oportunidade de mercado.

"Eles fizeram o que a galera já estava fazendo, mas com uma linguagem ainda mais popular e que tocasse a realidade das pessoas. E deu muito certo."

Ganhando a playboyzada

Eu sou um moleque que veio do funk, eu sou funkeiro, o trap veio entrando na minha vida de maneira muito natural, as pessoas falam que eu sou do trap, mas eu gosto de ressaltar que eu sou funkeiro. Eu acho que, desde que eu fiz o 'Poesia Acústica', fui migrando para o trap; ali eu já fui ganhando o público da pista, a playboyzada e tudo mais.

MC Cabelinho, trapper

Victor Chapetta/AgNews
Major RD no palco do Mainstreet Festival

Autonomia e liberdade

Em conversa com Toca, Major RD, que não tem origem no funk, começou em batalhas de rimas e mistura rock com trap no seu som, lembrou de uma afirmação que já ouviu diversas vezes: "É o trap, é o funk, conexão que nunca falha".

Ele comemora esse movimento: "Eu acho foda ver os cara do funk migrar pro trap e vice-versa, os cara do trap misturar com o funk. Eu acho que o que diferencia é só o BPM da batida do trap e do funk mesmo".

Além das produções caseiras da pandemia e de muitos nomes que estouraram com gravações em celular, os MCs também criaram seus próprios selos/bancas.

O veterano Filipe Ret é o dono da Nadamal, que tem artistas como MC Maneirinho no catálogo. Orochi é o nome por trás da Mainstreet Records, que gerencia Bielzin, Poze do Rodo, Oruam e Chefim e promove seu próprio festival —que, no próximo ano, terá edição até em Portugal. Já Major RD é o cara à frente da Rock Danger, com nomes como Leall e BTrem.

Essa autonomia seria mais um dos fatores que ajudaram na ascensão da cena por garantir a liberdade artística dos MCs. Uma herança da cultura underground do rap.

'Viver de arte é ser livre'

Hoje a gente aprendeu a fazer tudo. Tem mano aí que estourou na cena gravando no celular. E isso é genial, tá ligado? Quando eu lancei '60k', que foi minha primeira música que bateu 1 milhão, eu recebi muitos convites de muitas gravadoras, só que eu optei em ter a minha própria. Depois que a música bateu milhão não vou entregar o trabalho para outra pessoa que ainda vai mandar em mim. Viver de arte é ser livre

Major RD, trapper

Reprodução Instagram @eubtrem
A trapper BTrem

Cachê de R$ 400 mil

"Eu era muito novo, mas eu lembro da ascensão do funk. Da época da Furacão 2000 e essas paradas. Eu lembro que o funk tocava muito em todas as baladas, todas os churrascos, todas as casas, tocava muito funk. Hoje é o momento do trap. Acho genial e acredito que ainda vai crescer mais", aposta Major RD.

Ele também lembra que no começo da sua carreira no rap os cachês bons eram de R$ 4.000 e hoje há quem ganhe R$ 400 mil em uma apresentação. O trap alcançou valores equivalentes aos cachês dos sertanejos.

Aposta da banca de Major RD, a rapper BTrem classifica o trap como a música que todo mundo ouve.

Virou um estilo musical que abrange todas as idades, da minha mãe ao meu irmão mais novo, todo mundo escuta. Tem trap que você pode ouvir para sofrer e tem trap para ouvir no churrasco. BTrem

Rogério Fidalgo/AgNews
MC Maneirinho em show no Alma Festival

Todo mundo escuta

"Todo mundo escuta"; foi exatamente a resposta de um grupo de jovens moradoras de Botafogo e do Humaitá, áreas de classe média da cidade, questionadas, após o show de Cabelinho no Mainstreet Festival, sobre o que as atraia no gênero musical.

Também foi essa a resposta que ouvimos de um grupo de adolescentes, acompanhado da mãe de um deles, todos na faixa etária dos 15 anos, que assistia uma partida do Racha do Maneirinho —o futebol viral dos MCs que acontece na Barra da Tijuca.

"Eu atribuo o sucesso com os mais jovens especialmente à linguagem que eles incorporaram às músicas. Não só nas letras, mas também nos beats. E quem fez isso muito bem foi Orochi, que passeou muito no beat do Dallass e do Kizzy. Eu cito ainda o Cabelinho com WC no Beat. Por fim, não tem como deixar de citar o Filipe Ret, com sua trajetória e construção dentro do gênero", comentou a podcaster Naomi Nicolau.

Os baixinhos adoram

As crianças também amam os MCs e o trap, como ficou claro no CPX Rap Festival, no Complexo do Alemão. A chegada de Chefin foi acompanhada por vários fãs-mirins. Ele comenta o sucesso entre baixinhos no vídeo abaixo:

Semanas antes, o trapper fez a festa da criançada ao levar um Tesla Cybertruck para a gravação de um clipe na Vila Kennedy, Zona Oeste do Rio.

Reprodução Instagram Chefin leva Tesla Cybertruck para a gravação de clipe na favela da Vila Kennedy, no Rio

Chefin leva Tesla Cybertruck para a gravação de clipe na favela da Vila Kennedy, no Rio

Dhavid Normando/Estadão Conteúdo
MC Cabelinho exibe cordões de ouro em show no Rock in Rio 2024

Lifestyle

Ao chegar no Rap Festival no CPX era notável o público estiloso. O mesmo aconteceu no Rock in Rio e no Mainstreet Festival. Estar devidamente trajado para os eventos de trap faz parte do lifestyle da cena.

Tu tem que chegar bem vestido, mano. Tem que chegar com o calçado na moral, com a camisa da hora. Bancar um estilosinho maneiro. E tem gente que gasta muito dinheiro com isso, com marca e tal. Bruno Sousa

A "ostentação" do público é reflexo do que ouvimos em algumas letras e também da influência dos próprios MCs, com suas roupas de marcas, carros, joias e cordões grandes.

Wagner Meier/Getty Images
Filipe Ret ostenta blusão da Balenciaga e cordãozão de ouro no pescoço no Rock in Rio 2024

'Quero ter um cordão'

"Eu cresci na favela vendo que todo mundo respeitava aqueles caras que tinham um cordãozão. Os cara mais foda do rap que eu via tinha um cordãozão. Os mais brabos do funk também tinham. Quando a gente passa a ter uma condição aí a gente quer ter o mesmo", explica Major RD mostrando a joia em seu pescoço que é uma ferradura em tamanho real de um dos seus cavalos.

Eu quero ter um cordão, quero ter um carrão, eu quero ter um brinco maneiro, eu quero ter um conjunto de roupa maneiro. Quem tem um cordão desse não é qualquer um. Faz parte do lifestyle do trap. Major RD

Além dos carros, joias e roupas, Major investe em cavalos. O trapper tem oito mangalargas marchadores.

"O rolé do cavalo acaba se tornando uma ostentação por ser um hobby caro. Mas meu objetivo nesse caso nunca foi ostentar. Meu pai sempre teve envolvimento com os bichos. E eu cresci com esse carinho. Eu só não tinha antes porque eu não tinha condição de ter", completa Major.

Reprodução Instagram Mainstreet
A trapper Slipmami

Trap delas

As mulheres —assim como em todas as esferas da sociedade— também buscam seu espaço e reconhecimento na cena trap e rap enquanto artistas. Nomes como Azzy, Ebony, Slipmami, Tasha e Tracie, AJuliacosta, Duquesa, Afreekassia e BTrem estão ajudando a diversificar a cena. Neste ano, por exemplo, o Mainstreet Festival ampliou a participação feminina no lineup, ainda que de forma tímida.

"No rap nacional eu já vejo uma melhora muito boa porque hoje em dia a gente tem umas artistas muito grandes fazendo umas coisas que a gente nunca tinha visto. Por exemplo, eu destaco AJúlia Costa e Duquesa, que tiveram um grande ano com um espaço que eu ainda não tinha visto uma mulher ter. Quando eu tinha 15 anos e ouvia rap, não existiam essas referências", conta BTrem.

Em "Artilheira", primeiro álbum de BTrem pela Rock Danger, ela tem feats com outras mulheres do cena: TaldiBruna, MK e Splimani.

'Eu existo'

Conforme o trap vai crescendo, a cena para as mulheres também vai ampliando. Acho que é uma consequência. Mas a gente tem que se ajudar. Eu sei que os caras têm a panela deles. Na minha visão, muito homem por aí só vai me procurar quando eu tiver um sucesso muito grande. Se não, eles sempre vão fazer questão de não saber que eu existo.

BTrem, trapper

10 músicas para entender o trap nacional

  • 1

    'X1' - MC cabelinho

  • 2

    'A Cara do Crime' - Vários

  • 3

    'Corte Americano' - Filipe Ret

  • 4

    'Visão de Cria' - Vários

  • 5

    '7 Meiota' - Maneirinho

  • 6

    'IPhone Branco' - Borges

  • 7

    'Balão' - Orochi

  • 8

    'Anota a Placa' - TZ da Coronel

  • 9

    'Só Rock 2' - Major RD

  • 10

    'Espero que Entendam' - Ebony

Topo