Me entendi lésbica na adolescência e meu maior obstáculo fui eu mesma
Minha avó, que hoje tem 83 anos de idade, sempre foi uma referência para mim. Além de ser uma das pessoas mais admiráveis que conheço, é bastante vaidosa, apesar de discreta.
Nascida e criada na fazenda, estudou só até a quarta série primária porque tinha que ajudar a cuidar da casa e dos irmãos menores, como tantas outras mulheres de sua geração. Não havia diálogo com os pais, havia hierarquia. Meu bisavô não admitia ser contestado, exigia ser obedecido. E a maior parte de suas restrições serviam para as quatro filhas mulheres; com os três filhos homens, ele era mais permissivo.
Naquela época, era comum que os rapazes iniciassem suas vidas sexuais em prostíbulos. Às moças, era imposto o recato. Sexo antes das bodas era uma vergonha - para elas, apenas. A eles, sempre foram liberadas as transas antes e até fora do casamento.
Não era incomum que tivessem casos extraconjugais e até constituíssem outras famílias enquanto viviam com a primeira esposa. Meu bisavô não foi uma exceção. Meu avô, tampouco. As mulheres sempre sabiam, mas carregavam nas costas o dever de preservar o relacionamento.
Autonomia, liberdade e empoderamento eram conceitos a léguas de distância naquele tempo e espaço. O que parece uma realidade de outro mundo, do século passado e de tantos séculos atrás, inacreditavelmente ainda reverbera. Mas isso está mudando.
Nunca existiram dois tipos de mulheres: as putas e as santas. O que havia era o interesse de segregar e limitar a atuação feminina. As revoluções políticas e sexuais que moldaram as estruturas atuais não foram um presente, mas uma conquista.
Não precisamos mais nos encaixar em padrões e ser isso ou aquilo. Podemos ser isso e aquilo. E mudar de ideia quando bem entendermos. Não há motivos para mantermos nossos desejos, sejam quais forem, em segredo.
Desde pequena eu me sentia diferente das outras meninas. Nunca admirei princesas e detestava cor-de-rosa, por exemplo. Nas brincadeiras de casinha, eu queria sempre ser o pai - que ficava lá do outro lado do quintal com os carrinhos, abrindo estradas no barro e cuidando da fazenda cheia de animais feitos de chuchu e manga.
Quem era a mãe tinha que ficar cuidando do bebê, varrendo a casa e fazendo comida. Só muito tempo depois entendi como a questão do machismo vai sendo impregnada na gente desde a infância. Por que o pai não poderia revezar as tarefas domésticas com a mãe? Por que a mãe não virava uma fazendeira e o pai, um chefe de cozinha? Aliás, por que sempre havia uma mãe e um pai e não um casal que simplesmente morasse junto e não tivesse filhos?! A ficha demora a cair.
A base da nossa educação, a formação dos nossos hábitos... Tudo é aprendido com a família. A tendência é reproduzirmos o que aprendemos.
O problema começa quando o que é ensinado não é compatível com quem verdadeiramente somos ou gostaríamos de ser. E começam as cobranças: "Arruma melhor o cabelo", "Senta igual mocinha", "E os namoradinhos?". A partir daí, entendi que não me encaixava nas expectativas que tinham de mim. Quem eu era, afinal?
Isso eu fui descobrindo devagarzinho, errando, acertando e sendo taxada como "estranha", "rebelde", "sapatona". Quem já sofreu esse tipo de bullying sabe que dói, mas a gente consegue dar a volta por cima quando abraça quem realmente é. "Sou, sim. Algum problema? Isso faz diferença aí na sua vida? Então um beijo, meu anjo."
Claro que anos de conflitos externos e internos não se resolvem assim, magicamente. Tive problemas de autoimagem e autoestima, e o sexo já foi um grande tabu para mim.
Já tive vergonha do meu corpo e não me sentia nem um pouco atraente, sexy, desejável. Por todas essas inseguranças, tinha dificuldade de demonstrar interesse quando gostava de alguém. Um problema levava a outro e todos pareciam muito maiores e mais relevantes do que realmente eram.
Me entendi lésbica na adolescência, mas naquele período, há 20 anos, a internet era discada e ainda engatinhava. Eu também.
Sem muito acesso à informação, mergulhei em mim, nos resultados das minhas experiências pessoais, e nas histórias de vida dos amigos que enfrentavam questões semelhantes.
Entendi que não existe uma receita de bolo, uma solução que funcione para todo mundo. Descobri, olhando no espelho, que o meu maior obstáculo estava ali, de pé, olhando para mim. Decidimos fazer as pazes. E nos lembramos desse pacto todos os dias.
Mulher sem Vergonha é um espaço em que mulheres poderosas expressam suas ideias, desejos e confiança sem nenhum tipo de constrangimento. Para inspirar uma vida livre de padrões e julgamentos.
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