Maria da Penha, Isa Penna e o desrespeito à mulher pelos homens no poder
Essa semana assisti, perplexa, no mesmo dia, ao vídeo da deputada Isa Penna (PSOL) sofrendo importunação sexual cometida pelo deputado Fernando Cury (Cidadania) durante sessão realizada na Assembleia Legislativa de São Paulo e ao vídeo do juiz Rodrigo de Azevedo Costa afirmando, em plena audiência em Vara de Família, que não está "nem aí para a lei Maria da Penha", e que aprendeu uma coisa na vida de juiz: que "ninguém agride ninguém de graça".
Ao final daquele dia fui invadida por um misto de indignação e tristeza. Indignação, pelas violências que aquelas mulheres foram vítimas em ambientes nos quais deveriam se sentir seguras e, tristeza, por saber que esses episódios não são isolados e refletem o que passam milhares de mulheres em nosso país longe das câmeras.
As estruturas institucionais dos poderes públicos no Brasil, que deveriam garantir a eficácia dos direitos das mulheres a uma vida sem violência, preconceito ou discriminação de gênero, foram, por meio dos seus agentes, protagonistas da violação desses direitos.
No caso específico da deputada Isa Penna, a violência de gênero deu-se no contexto também da prática de uma violência política. Isa Penna estava no exercício da função, como representante eleita da população, quando sofreu a importunação sexual, tendo seu corpo tocado de forma totalmente inapropriada e sem seu consentimento por um colega deputado.
Segundo estudo da ONU, que avalia 40 indicadores, o Brasil é o antepenúltimo país da América Latina em participação das mulheres na política. Atualmente, apesar de as mulheres representarem 52,5% do eleitorado brasileiro, não passam de 15% do total de parlamentares no Congresso Nacional e, nas Assembleias Estaduais, esse número não é maior.
Existem muitos fatores que fazem com que as mulheres não encontrem as mesmas condições que os homens para disputarem as eleições e para exercerem seus mandatos: desigualdades visíveis e invisíveis que, em razão do gênero, impõem às mulheres desafios e obstáculos a mais. E quando, eventualmente, conseguem ser eleitas, isso não muda, pois encontram, muitas vezes, um ambiente de atuação hostil, marcado pelo machismo, preconceito, discriminação e violência política.
A violência política pode ser definida como o ato de assédio, constrangimento, ameaça, humilhação e perseguição praticado contra candidata ou titular de mandado, com menosprezo, preconceito ou discriminação à condição de mulher, cor, raça ou etnia, com o objetivo de impedir ou dificultar sua campanha ou desempenho no mandato.
Para regular esse assunto, o Projeto de Lei n.º 349/2015 foi aprovado na Câmara dos Deputados, em 10 de dezembro de 2020, e agora segue para deliberação do Senado Federal, dispondo sobre combate à violência e à discriminação político-eleitorais contra a mulher. A proposição normativa tem o claro objetivo de tentar garantir condições plenas para quer as mulheres possam disputar os pleitos eleitorais e exercer seus mandatos.
Mas será que a aprovação dessa lei será suficiente? Será que diante da prática de uma violência política levada à apreciação do poder judiciário, o juiz achará que a possível nova lei importa? Ou será que ele vai achar que ninguém agride de graça e que se a mulher sofreu a violência é porque 'mereceu' ou 'provocou'?
O caso do Juiz Rodrigo de Azevedo Costa, em São Paulo, nos mostra que, infelizmente, os desafios do enfrentamento da violência de gênero em nosso país são muito mais profundos. Precisamos de boas leis para esse enfrentamento, mas precisamos também de um sistema de justiça que garanta a efetividade dessas leis, com adoção de medidas que protejam os direitos das mulheres vítimas de violência, e que não reproduza uma violência institucional contra elas.
Leis e campanhas com o objetivo de estimular denúncias não serão suficientes enquanto as vítimas, ao invés de encontrarem acolhimento e um tratamento digno no sistema de justiça, forem vítimas de novas violências e culpabilizadas pelos crimes que tiveram a coragem de denunciar.
Nada pode ser mais grave no plano da proteção dos direitos humanos do que quando o próprio Estado, por meio de seus órgãos, participa na violação dos direitos das mulheres.
Em 2012, a Lei Maria da Penha foi reconhecida como a terceira melhor do mundo no combate à violência doméstica pela ONU, mas ela não importou para o magistrado Rodrigo de Azevedo Costa.
Poderíamos tentar ter algum conforto pensando que se trata de um caso isolado, mas infelizmente não é. Em novembro desse ano, assistimos Mariana Ferrer, após buscar o Poder Judiciário, denunciando um crime sexual, ser humilhada e ofendida pelo advogado de defesa do acusado, perante a passividade de juiz e promotor que não exerceram a autoridade que tinham para cessar aquelas violências naquele momento.
A titularidade de direitos não implica, necessariamente, em sua efetividade. Todo o avanço na legislação brasileira de proteção aos direitos das mulheres não foi acompanhado de transformações, na mesma proporção e profundidade, na sociedade. A desigualdade nas relações entre homens e mulheres é estrutural na dimensão social, o que perpassa por questões culturais, educacionais e econômicas, que podem ser observadas nas relações familiares, no trabalho e nas ruas cotidianamente.
O tratamento da diferença entre mulheres e homens sempre foi um dos problemas sociais mais profundos da humanidade. A presença exclusiva ou predominante de homens nos espaços de decisões nos diversos sistemas da sociedade, político, econômico, comunicação refletiu, ao longo da história, no desequilíbrio socialmente percebido na forma de desigualdade. Quando se considera a interseccionalidade racial, a desigualdade é ainda maior.
Apesar de os direitos das mulheres estarem previstos na letra das leis, as estruturas políticas e jurídicas do nosso país, impregnadas pelo machismo estrutural, operam de maneira não apenas a não lhes garantir efetividade, mas, muitas vezes, de forma a reproduzir em suas operações a desigualdade de gênero, uma vez que estão programadas para manter o estado de coisas vigente.
A efetividade dos direitos das mulheres, portanto, passa por enfrentar essas estruturas, o que inclui o aumento da participação das mulheres nestes espaços, a mudança nos hábitos e costumes enraizados nas práticas cotidianas e a revisão dos valores que permeiam esses espaços.
Todas as violências de gênero estão, em alguma medida, conectadas porque têm a mesma origem: a desigualdade de gênero. A igualdade de gênero, como oposto dessa desigualdade, não presume a supressão das diferenças, mas a garantia de que mulheres e homens tenham os mesmos direitos e as mesmas oportunidades, a garantia de que as mulheres não sofram preconceito, discriminação ou violência em razão de sua condição de gênero.
Se quisermos mudar essa realidade, todas as pessoas precisam assumir suas responsabilidades nesse processo. O sistema de justiça brasileiro precisa repensar suas estruturas e seu funcionamento para que de fato garanta a proteção aos direitos das mulheres violados. Precisamos garantir mais mulheres em nossos parlamentos, mas também condições plenas para que elas possam exercer seus mandatos, sem preconceito, discriminação e violências.
Daniela Lima de Andrade Borges é advogada e presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB Nacional
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