"Cresci odiando meu corpo. Técnico me dizia para evitar doença do quadril"
"No último domingo, o programa 'Esporte Espetacular' apresentou denúncias de ex-ginastas sobre assédios morais que foram praticados contra elas na época em que representavam o Brasil. Eu, que já passei por competições olímpicas como nadadora, sei bem o que é isso.
Demorei para perceber que, nos meus anos de natação, isso também acontecia comigo. Mas a verdade é que já passei por inúmeras situações.
Tive um treinador que, desde muito jovem, dizia que quando eu menstruasse, deveria ter muito cuidado com a 'doença do quadril'. Ele usava a expressão porque minha mãe é a típica brasileira: tem o quadril largo, as coxas grossas. Então cresci tendo medo de que o meu corpo ficasse semelhante ao dela. E, como ouvia que estava 'gordinha', 'acima do peso', desenvolvi um ódio ao corpo que dura até hoje
Nas fotos, sempre olho primeiro para as minhas pernas, para ver se não estão muito grossas. Quando ia enfrentar alguma adversária, checava o tamanho das pernas delas, porque achava que isso seria determinante para a performance. Tentava me manter sempre o mais magra possível para a minha composição corporal, ainda mais porque, na natação, nossos corpos ficam sempre expostos.
Sei que isso tem a ver com ser mulher. Temos que nos lembrar que a presença feminina no esporte não vem desde a origem dele. As mulheres só passaram a participar dos Jogos Olímpicos, por exemplo, em 1900.
Precisou-se de uma militância de um grupo feminista para que pudéssemos ocupar esses espaços. Historicamente, o esporte foi feito por homens e para homens. Isso faz que tenhamos que nos adaptar para caber ali.
Sofremos mais, mas não somos as únicas a sofrer. Entendo que os assédios verbais são ainda mais difíceis de serem identificados. A linha é tênue entre um treinador ou uma pessoa em posição de superioridade te incentivar para buscar que você melhore — uma vez que atletas estão sempre nos seus limites físico e mental — ou quando a fala é agressiva, violenta. Percebo que, se o objetivo é ganhar a qualquer custo, as duas coisas inevitavelmente vão se misturar.
A única forma de prevenir esse tipo de situação é bater na tecla da educação e estipular bem os limites de comportamento, determinando quais condutas de todos os envolvidos, incluindo fisioterapeutas, funcionários dos clubes e até pais, são aceitáveis e quais não são.
Em 2016, o Comitê Olímpico Internacional listou 12 tipos de violências às quais jovens atletas estão expostos. Toda entidade esportiva, seja ela esfera nacional ou regional, tem que ter como ponto de partida esse consenso, adotado pelo Comitê — e criar práticas a partir dali.
É preciso ter espaço para que denúncias sejam feitas. É preciso também que as pessoas designadas a receber estas denúncias estejam preparadas: saibam quais perguntas devem fazer — e que tenham autonomia para prosseguir investigações. Esse tipo de ação deve ser feito sempre de cima para baixo, partindo das maiores organizações e chegando até os clubes e às aulas dos futuros profissionais que atuarão na área de educação física.
Se continuarmos batendo nessa tecla, seremos capazes de criar um sistema educacional que promova o esporte da maneira mais saudável possível. Sou otimista e acredito que, com as ferramentas certas, somos capazes de transformar esse ambiente."
Joanna Maranhão é ex-nadadora olímpica. Sua coragem em denunciar a violência sexual sofrida na infância inspirou a Lei Joanna Maranhão, que estabelece que o prazo de prescrição para o crime de abuso de crianças e adolescentes seja contado a partir da data em que a vítima completa 18 anos. Atualmente Joanna vive na Bélgica, onde conclui um mestrado sobre Ética e Integridade no Esporte e cuida do filho, Caetano, de 1 ano e 4 meses.
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