Topo

Fiscal do corpo alheio: a dismorfia corporal nas críticas à Cleo e Gabi

"Patrulha dos Corpos Ideais" fiscalizou o emagrecimento de Cleo.  - Reprodução / Instagram @cleo
"Patrulha dos Corpos Ideais" fiscalizou o emagrecimento de Cleo. Imagem: Reprodução / Instagram @cleo
Carla Lemos

Colaboração para o UOL

07/01/2021 04h00

Em uma ilha no Atlântico, Bruna Marquezine curte férias com as amigas. "Ah, que delícia, o verão", você pensa. Sim, se não fosse o debate público sobre seu corpo que surge a cada foto postada: "precisa engordar um pouquinho", dizem. Para a cantora e ex-BBB Gabi Martins os comentários insistentes nas suas fotos são para que ela modifique partes do seu corpo "te desejo um silicone no lugar das muchibinhas". Já Cleo (Pires) sofre ataques por "do nada ter aparecido trincada".

E não precisa ser mulher famosa para que a "Patrulha dos Corpos" Ideais volte sua vigilância para o seu corpo. Ainda nem tínhamos chegado ao 1º dia útil de 2021 quando uma editora de moda foi exposta por fazer comentários gordofóbicos para um homem negro no Instagram. "Sem Maldade" ela argumentou, em mais um caso de boa intenção que deixa o inferno cheio.

Toda vez que alguém faz um comentário "sincero" "para o seu bem" sobre o corpo de outra pessoa, seja ela alguém próximo ou uma figura pública, ela está proferindo um discurso de ódio. Fazer críticas não solicitadas ao corpo de alguém, seja falando do seu peso, aparência, suas feições e formas, é um estímulo para esta pessoa a detestar algo ou tudo em si mesma. Isso se chama "body shaming" ou em bom português: "humilhação do corpo" e é um discurso de ódio*

É como eu já falei aqui em Universa: "aprendemos a olhar pros nossos corpos procurando defeitos". A gente se torna vigilante com nossos corpos desde muito cedo. Ainda na primeira infância, eu tinha meu corpo comparado com o de minhas primas por ser mais "barrigudinha" que elas. Crescemos com toda a cultura dizendo que a aparência era o maior valor de uma mulher. Se em séculos passados o controle era pela virgindade das mulheres (da elite), agora é a vigilância sobre a perfeição de seus corpos.

Corpos de mulheres são vistos pela sociedade como partes, como uma coisa, um objeto que pode ser moldado e manipulado ao bel prazer das tendências do momento. Viver com seu corpo do jeito que ele é não é opção, afinal tudo pode ser melhorado. Como diz a autora Susie Orbach no livro Bodies "onde há um problema corporal (percebido), uma solução pode ser encontrada".

Mas a verdade que precisa ser dita: a busca não é por corpos perfeitos. É justamente por corpos irreais. O padrão são corpos que não existem. São fragmentos moldados da realidade. Desde o momento que a fotografia foi inventada, ela é manipulada. Fotos sempre foram uma versão da realidade. No séc XIX, fotógrafos experimentaram recursos de ilusão de ótica para fazer as cinturas de espartilho das mulheres parecerem surrealmente finas. No séc XXI temos apps que modelam cinturas do mesmo jeito que os caras faziam há 200 anos.

O perfil @postadaxmarcada no Instagram tem quase 500 mil seguidores e mostra a diferença entre as fotos postadas por influenciadoras em seus perfis e as que aparecem nas marcações de outras pessoas. É assustador. Até porque quem mais faz isso são mulheres que já estão no cercadinho VIP do padrão. E não são só influenciadoras, até mesmo Beyoncé, antes de "Pretty Hurts", já foi denunciada por distorções em fotos suas que indicavam redução do tamanho de suas coxas e quadris.

Nunca antes na história desse planeta fomos tão expostas a imagens dos nossos próprios corpos e de corpos dos outros. Nem mesmo quando todo mundo andava peladão em suas tribos, a pressão estética era tão poderosa porque os humanos andavam em pequenos grupos. Você tinha referência visual de no máximo algumas poucas dezenas de corpos para se basear. Eu falo no meu livro "Use a Moda a Seu Favor" que nós temos essa tendência intrínseca a nos comparar a outras pessoas para auto aperfeiçoamento. Isso é da nossa natureza e há níveis saudáveis para essa comparação.

Mas, quando as revistas, a TV e, agora, as redes sociais extrapolam imagens produzidas e selecionadas para servirem como ideais de beleza para milhões, bilhões de pessoas ao redor do planeta, a gente começa a ter graves problemas sociais. Nosso cérebro não foi feito para se comparar e ser comparado com tanta gente. E isso buga nosso sistema.

Dismorfia Corporal é um transtorno de saúde mental que consiste na percepção distorcida da própria imagem, uma obsessiva insatisfação com a própria aparência física. É quando tudo que a pessoa faz ou deixa de fazer está relacionado com objetivos de melhorar a imagem ou esconder o que não gosta no próprio corpo.

A dismorfia corporal é amiga fiel dos distúrbios alimentares como anorexia e bulimia que levam uma mulher a ser internada a cada 2 dias no SUS. Num levantamento feito em 2017 pela Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo 77% das jovens entre 10 e 24 anos tem propensão a desenvolver distúrbios alimentares. Uma em cada quatro meninas de 11 a 17 anos disse já ter tido contato na internet com receitas pra ficar muito magra.

A pressão que eu sofria na infância ao ser comparada com minhas primas fez com que eu crescesse com uma percepção completamente alterada do meu corpo. E pesquisas hoje confirmam que crianças de 6 anos já têm uma imagem distorcida e crítica do próprio corpo.

Distúrbios alimentares também podem provocar ansiedade e depressão, abuso de remédios e outras drogas, além de serem uma das principais causas de suicídio — que é a segunda maior causa de morte de jovens mulheres no país.

É aquilo, quem é muito oprimido tende por repetir opressão por ser tudo que conhece. É por isso que são em sua maioria mulheres as maiores algozes da pressão estética, comandantes e soldadas aguerridas da Patrulha dos Corpos Ideais.

Comentar sobre o emagrecimento ou engordamento das pessoas não contribui em nada com a saúde física delas. Falar do corpo dos outros não é se preocupar com a pessoa. Muito pelo contrário. É condenar a saúde mental de toda uma sociedade que vê na perfeição dos corpos o seu novo ideal de sucesso pessoal.

*Carla Lemos é feminista, carioca e produtora de conteúdo há mais de 15 anos. Observadora atenta das mudanças de comportamento das mulheres na sociedade, Carla comanda o podcast PRIMAS e é autora do livro "Use a Moda A Seu Favor". Em 2021, lançará seu novo livro, "As Mentiras que te Contaram Sobre Ser Mulher"