Opinião: "Precisa dizer que Mônica é negra?" e o racismo à brasileira
A enfermeira Mônica Calazans foi a primeira brasileira vacinada contra a covid-19, em um evento transmitido direto do Hospital das Clínicas, em São Paulo, no último domingo, 17, após a Anvisa ter liberado o uso emergencial da CoronaVac. O momento histórico - e de alívio - foi protagonizado por duas mulheres. Mônica, que trabalha no hospital Emílio Ribas, negra, moradora de Itaquera, extremo leste da periferia paulistana, e a enfermeira Jéssica Pires de Camargo, branca, que a vacinou.
Em um país onde o vice-presidente Hamilton Mourão acha que não existe racismo, que "é uma coisa que querem importar", o fato de enfatizarmos que Mônica é uma mulher negra e evidenciarmos isso jornalisticamente incomodou muita gente. Nas redes sociais - incluindo a postagem que Universa fez sobre o fato no Instagram, seguidores indignados questionavam: "Por que dizer que ela é negra?", "Será que os brancos também não vão se vacinar?", "Se fosse uma branca, ressaltariam a cor?" e ainda "Precisam falar que ela é negra? Somos todos iguais!".
Não, ainda não somos todos iguais no Brasil
Racializar as discussões e as situações, ou seja, olhar por uma perspectiva em que a classificação racial também é parte importante do discurso, é um caminho sem volta. No Brasil, é bastante necessário.
Precisamos voltar algumas casas no tabuleiro da História para entender: negros e negras sofrem até hoje com o racismo, em todas as suas expressões, e colhem o fruto amargo das desigualdades raciais instauradas por um sistema escravista.
Não fomos nós que criamos esse sistema, mas é ele quem estabelece que lugares são destinados aos brancos e quais são de pertencimento de mulheres negras, como Mônica. Dizer que 'somos todos iguais' é uma falácia do racismo à brasileira, aquele que finge que não existe, mas que mantém intocável a estrutura de privilégios usufruídos pela branquitude.
Por outro lado, dizer que Mônica Calazans é negra, moradora de Itaquera, extremo leste da periferia da cidade, reforça uma identidade que, para os racistas, é por vezes invisível.
Cruzamos quase diariamente com mulheres negras e periféricas em nosso cotidiano. Mas a sociedade destina funções subalternizadas a elas, como empregadas domésticas, atendentes de lanchonete, cobradoras de ônibus, e tem a capacidade de invisibilizá-las, desumanizá-las.
Não há nada de errado em exercer essas atividades; o problema está em sempre terem a mesma cara.
Não é preciso ir tão longe para afirmar o quanto a invisibilidade se traduz em vulnerabilidade. É só relembrarmos que a primeira morte por covid foi de uma mulher negra, a empregada doméstica Cleonice Gonçalves, no Rio de Janeiro. Ela trabalhava na casa de uma mulher que tinha ido à Itália, então epicentro da pandemia, e também foi contaminada.
A sociedade com ranço escravocrata e colonial tem dessas: faz vítimas negras todos os dias, deixando com que os tentáculos do racismo alcancem os corpos negros de forma devastadora.
A "mulher negra anônima", como definiu a intelectual e filósofa Lélia Gonzalez, sempre foi alvo de uma tripla opressão social; de gênero, de raça e de classe. Triunfar em sua história requer coragem para driblar violências, enquanto cuida de si e dos seus, como fez Mônica, que foi auxiliar de enfermagem por 26 anos e só conseguiu cursar o Ensino Superior mais tarde, recebendo o diploma aos 47 anos.
Afirmar a identidade de Mônica, mulher, negra e pobre, é uma celebração de sua vida. Ela borrou as fronteiras do imaginário do brasileiro.
Mônica é a personagem principal de um momento histórico em um país que foi construído com a força dos corpos negros, mas que não reconhece o quanto precisa caminhar para fazer com que negras e negros estejam em todos os lugares, inclusive em posições de poder e de representação.
Vibramos com Mônica. E agradecemos. Obrigada, enfermeira, por sua dedicação à profissão e por ser a imagem da esperança para todos nós.
*Nathália Geraldo é repórter de Universa e pós-graduanda em Cultura, Educação e Relações étnico-raciais na USP.
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