Por que me recuso a chamar meu filho autista de anjo azul
Sou mãe do Thomas, um menino autista de 6 anos. Ele foi diagnosticado 3 anos depois de investigarmos sua regressão no desenvolvimento e seu atraso na fala. Como já havia passado meses de sofrimento, sabendo o que poderia ser e tomando consciência de que minha vida não seria como eu havia planejado, saber que ele era autista me trouxe certo alívio.
Fui prática, busquei informação, tratamento e parti, de mãos dadas com ele, para essa nova jornada. Sendo mãe de uma criança com deficiência, um mundo se abriu e passei a ver o que antes era transparente para mim. Você já se perguntou com quantas pessoas com deficiência você estudou, trabalhou, foi ao bar, jogou bola, videogame? Então, bem-vinda ao mundo dos invisíveis para a sociedade.
Na fase das descobertas duras, muita gente me indicou grupos de mães no Facebook. De cara me deparei com muitos perfis cheios de exposição da vida da criança e com variações de nomes sob o tema "anjo azul". Eu nem sabia o motivo, mas me incomodava muito aquilo, chamar o filho autista de anjo azul. Fui ler e procurar saber.
Anjo se referia ao fato de serem seres especiais, como os próprios, e azul se referia à cor oficial do autismo, por teoricamente ter mais incidência em meninos. O termo nunca vinha sozinho, mas com um discurso de fundo religioso, de que o filho era uma dádiva enviada por Deus, que ali havia uma família escolhida para tal missão.
Me afastei das redes, não queria ler nada, me fazia mal. Com o tempo, me abri e passei a descobrir outras mães que negavam a nomenclatura, e autistas adultos ativistas. Com a ajuda deles, entendi o motivo daquilo não ser bacana.
Quando você repete o termo para milhares de pessoas nas redes sociais e no seu dia a dia, ganha uma força enorme. Passa a não ser mais "um modo fofo de dizer".
Vem comigo analisar. Anjo não é humano. Anjo não é cidadão. Não é pessoa com direitos. Não tem sexo, não fala, não tem vontade, paira no ar trazendo amor. Tirando a parte de trazer amor, pois estou falando do meu filho, me recuso a chamá-lo de anjo. E olha que sou cristã, devota de Santo Expedito, daquelas que vão pelo menos uma vez ao ano ao Santuário de Aparecida pedir proteção a ele.
Mas meu filho é gente, ele tem opinião, quer ser ouvido (mesmo falando muito pouco). Chamá-lo assim o desumaniza. Os anjos não precisam estar incluídos nas escolas regulares, de um tratamento multidisciplinar adequado, de acesso à comunicação alternativa, de apoio na vida adulta, de vaga de emprego. Anjos ficam em outro plano, no plano dos esquecidos, daqueles que ninguém quer ver. Como a sociedade capacitista em que vivemos quer. Por isso, aqui não.
Outro ponto importante é que quando se associa a anjo a cor azul, há uma outra exclusão dentro da exclusão. Das meninas autistas. A cor azul se refere ao fato de que o autismo é mais diagnosticado em meninos. Antes, acreditava-se em uma proporção de cinco meninos para uma menina. Na prática, isso mudou faz tempo.
Muitas mulheres autistas, arrisco dizer a maioria, só descobrem que são autistas na fase adulta por autoconhecimento ou porque têm filhos autistas e passam a se identificar. Quantas ainda estão sem um laudo e lutando para que médicos não achem que elas são neurotípicas, pois dirigem e casaram. Pais não podem dar uma cor que remeta ao masculino ou feminino.
Autismo não é azul nem rosa. Há diversidade no autismo também. Autistas trans. Autistas não-binários. Eles existem. E o que acontece quando esse anjo vira pré-adolescente um dia e vai passar a se tocar e descobrir sua sexualidade?
Outro ponto em que o adjetivo angelical não se encaixa: na infantilização do jovem e adulto autista, não só na questão sexual. Aqueles que, por serem não verbais, por exemplo, acham que não entendem nada, que não compreendem o mundo ao redor. Que não têm voz no sentido amplo. Se dentro de casa acontece isso, imagine fora. Para sempre no cantinho das eternas crianças.
Chamar seu filho autista de anjo azul e perpetuar esse discurso nas redes sociais faz com que ele não seja visto como pessoa. Ora, a gente não quer e luta para que sejam visíveis? Então, anjos não precisam de nada, são etéreos, para eles está tudo perfeito.
Não estou aqui para apontar o dedo e julgar nenhuma mãe atípica, pois estamos no mesmo barco. Quero que a gente se una para que os direitos dos nossos filhos sejam garantidos e que mais nenhum seja tirado deles. Que eles possam viver com dignidade. Não em um futuro distante. Agora. Afinal, anjos vivem para sempre, mas nós mães, não.
Manuela Aquino é jornalista e ativista. Faz parte do Setorial das Pessoas com Deficiência do PSOL de São Paulo e é uma das diretoras do Instituto Lagarta Vira Pupa, que dá apoio em diversas frentes às mães atípicas.
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