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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Lumena? Nego Di? O Estado? Quem decide quem é negro no Brasil

Gilberto, participante do BBB, que se declara negro e sofreu deboche de outros participantes do programa.  - Reprodução / Internet
Gilberto, participante do BBB, que se declara negro e sofreu deboche de outros participantes do programa. Imagem: Reprodução / Internet
Letícia Parks

Colaboração para Universa

08/02/2021 11h34

A mestiçagem é um fato no Brasil, mas diferentemente do que dizem os pensadores burgueses do início do século XX, o fato de haver mistura racial aqui não criou um país onde as tensões raciais estão superadas. Vemos hoje Bolsonaro dizer que é "daltônico" e que no Brasil existe apenas uma cor, mas sabemos muito bem que sob diferentes tons de pele, negras, negros e indígenas vivem no seu cotidiano as marcas da diferenciação racial.

Os recentes eventos no Big Brother Brasil - que trouxe à tona o debate sobre colorismo e autodeclaração racial - mostram que essas divisões não servem para potencializar a luta contra o racismo através de perceber as experiências de cada indivíduo frente à discriminação. Mas sim para dividir, hostilizar e alimentar uma disputa de egos sobre quem pode ou não falar em nome do povo negro. Se abre, portanto, o caminho para que debatamos outra estratégia, a de um movimento que saiba que nossos inimigos são apenas os capitalistas e suas instituições, como a Polícia, que mata na mesma proporção pretos e pardos.

Não vamos aceitar que nos impeçam o direito de nos definir enquanto raça, uma violência que atenta contra a trajetória do movimento negro e que retira um direito individual elementar, conquistado contra o autoritarismo dos estados que nos distribuíam identidade para nos escravizar. Se a autodeclaração racial não for nosso direito, quem vai decidir quem é negro? O Estado? O governo? A justiça? A polícia? Ou o Nego Di, a Lumena e a Karol Conká?

Para me desqualificar em debates políticos, fui chamada de 'clarinha de turbante' por uma conhecida intelectual negra que buscava não somente deslegitimar minhas posições, que eram diferentes das dela, como aferir se sou negra ou não. Recebi muito apoio diante desse ocorrido e por isso também venho elaborando sobre o tema.

A origem desse discurso foi o medo latente que essa burguesia nacional - forjada e enriquecida pelo trabalho escravo de negros e indígenas - tinham de que essa grande massa se colocasse em luta contra a opressão racial e a super exploração a que somos sistematicamente submetidos por todas as fases da história do país.

A professora e ativista Leticia Parks - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A professora e ativista Leticia Parks
Imagem: Arquivo pessoal

Nos convencer de que esse problema é de apenas alguns de nós foi uma das vias encontradas para enfraquecer nossas pautas e criar abismos dentro do nosso movimento. Mas a verdade é que esse discurso não passa de farsa, e se desmonta frente a qualquer análise simples de dados.

A diferença de rendimento médio entre pretos e pardos é de apenas R$ 19 reais, segundo os dados do IGBE de 2017, ambos na faixa de R$ 1.400, muito abaixo do que o Dieese avalia como o salário necessário para se viver. A mesma pesquisa mostra que pouco mais de 14% dos pardos e 14% dos pretos estão desempregados, por aí pelas cidades carregando mochilas de entrega de comida ou limpando casas por salários de fome.

Se vivemos da mesma forma - precária, difícil e dolorosa - e já entendemos por que o discurso do Estado esteve a serviço de criar essa diferença de termos, resta entender por que um setor que se autoproclama 'movimento negro' alimenta essa separação.

É preciso, em primeiro lugar, dizer que dessa farsa fizeram parte todos institutos de identificação e pesquisa oficiais, que apagaram o termo "negro" das pesquisas e das identidades, e nos forçaram a nos identificar não pela luta contra o racismo - que nos unificaria como negros - mas a nos identificar pelo tom da nossa pele, estimulando uma dolorosa confusão na população que se identifica parda: a de não entender a própria identidade.

No caso da população indígena, força a identificação parda ao burocratizar a autodeclaração indígena, submetendo-a a constrangedoras comprovações de origem, residência, como se ao viver na cidade a identidade indígena se apagasse.

Essa dor de não-pertencimento tem efeitos políticos sérios. Em primeiro lugar, conduz uma camada expressiva de pessoas a uma incapacidade de encontrar os motivos do salário menor, da violência vivida, da moradia precária. Em segundo lugar, a dificuldade que se tracem entre trabalhadores e jovens aliados para fortalecer esse combate, porque ao invés de fortalecer as lutas contra esse inimigo comum - o racismo e o capitalismo que sobrevive dele - são muitos os que deslegitimam ou desmerecem a dor vivida pelo outro.

É por isso que muitos dos militantes antirracistas que vieram antes de nós lutaram para forçar o Estado brasileiro a reconhecer a existência de uma identidade comum a pretos e pardos, que de acordo com o Estatuto da igualdade racial, publicado em 2010, são negros. Esse combate vem de longe, como explicou Sueli Carneiro na mesa de debate "Feminismos negros", organizada pela Companhia das Letras.

"Faço parte da geração que assistiu o que a fragmentação da nossa gente significou para nós. Se formos levar às últimas consequências essa ideia que opõe pretos e pardos, nós pretos vamos ter que travar uma luta de minoria que envolve em torno de 6% da população", defendeu Sueli no evento. "Por outro lado, se nós insistirmos nesse diapasão, eu quero saber o que a gente faz com aqueles corpos que estão no IML que são na sua maioria pardos também. Aqueles corpos de meninos negros assassinados", completou.

Cabe dizer ainda que a divisão de seres humanos em tons de pele, a determinação a partir disso de direitos e deveres, sempre foi o método dos opressores da população negra, e não queremos com nosso movimento copiar.

Estados autoritários em todo o mundo dividiram negros, árabes e outros povos racializados em subdivisões, instalando ódio e separação entre etnias muitas vezes inventadas pelo próprio poder imperialista. Um exemplo foi o caso de Ruanda, onde o Império Belga por séculos estimulou a divisão entre hutus e tutsis, atribuindo aos últimos o direito de representar o império, e aos outros a exclusividade no trabalho braçal.

A rivalidade tribal se acirrou com essa atribuição de direitos e deveres, levando a que entre os anos de 1994 e 1995 cerca de 1 milhão de pessoas tenha sido assassinada ali e na República Democrática do Congo devido ao golpe hutu. Tutsis eram identificados pela carteira de identidade e mortos imediatamente após a identificação.

Não se trata portanto de ignorar que cada sujeito possa ter suas experiências particulares com o racismo. Cada uma delas deve servir para colocar mais tijolos na edificação de nossa identidade, páginas na construção de nosso programa de ação, combustível para a classe trabalhadora, uma maioria feminina e negra, esse sujeito social que é capaz de parar a produção em nome da luta contra o racismo, o machismo, a LGBTfobia, da qual somos as principais vítimas, e lutar contra a burguesia que se aproveita do racismo para pagar salários menores para 54% da população.

Mas o colorismo, como se vê no BBB, não está a serviço do combate antirracista. Querem colocar nossa identidade a serviço de nos regular pra ter menos gente pra ir pro 'topo'. Isso porque pros neoliberais, a identidade negra tem que caber nos topos capitalistas, pra que políticas como 'negros no topo' ou 'representatividade' possam se provar eficazes.

Mas a verdade é que somos muitos e não cabemos nos topos capitalistas; e nós, feministas e antirracistas socialistas, não aceitamos que do topo se olhe pro chão, e ele siga cheio de sangue negro, isso porque queremos o topo do conjunto da humanidade, e para isso, lutamos pela massificação da identidade negra, que vai motorizar o ódio de classe contra a burguesia racista. Lutamos pela luta unitária entre negros, indígenas, asiáticos, árabes, todos os povos racializados, ao lado das massas brancas antirracistas, contra o capitalismo que se baseia na opressão e na exploração. Isso porque frente ao inimigo comum, trabalhadoras e trabalhadores de todas as cores rechaçam qualquer separação e atuam em comum, como conta o militante trotskista CLR James:

"Em Flint, durante as greves com ocupação de dois anos atrás, setecentos brancos do sul, embebidos desde a infância no racismo, se encontraram cercados no prédio da General Motors com um negro entre eles. Quando chegou a hora da primeira refeição, o negro, sabendo quem e o que seus companheiros eram se postou ao fundo.

Imediatamente foi proposto que não deveria haver discriminação racial entre os grevistas. Setecentas mãos se levantaram juntas. Diante de seu inimigo de classe os homens reconheceram que o racismo era algo subordinado e que não se poderia permitir que atrapalhasse sua luta. O negro foi convidado a sentar-se primeiro, e depois que a vitória foi alcançada, na triunfante marcha para fora da fábrica, foi concedido a ele o lugar de destaque. Esse é o prognóstico do futuro." (CLR JAMES, A revolução e o negro, in: A revolução e o negro, São Paulo, Edições Iskra, 2019, p. 36).

Esse prognóstico do futuro é o verdadeiro topo da humanidade, que só é possível com o fim da racialização e da sociedade de classes.

* Letícia Parks é professora formada em Letras pela USP. É militante do Movimento Revolucionário de Trabalhadores, uma das organizadoras do livro "A Revolução e o Negro", e colunista do Esquerda Diário.