Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Negacionismo de Naomi Wolf na pandemia não deve descartar toda sua obra
Críticas a Naomi Wolf, autora americana de um dos livros-referência do movimento feminista, "O Mito da Beleza" (1991), não são novidades. Antes mesmo de chegar ao Twitter brasileiro suas recentes postagens negacionistas e anticiência na pandemia, nos Estados Unidos as contradições com teorias conspiratórias, denúncias de transfobia e comportamentos antiéticos de Naomi são debatidas ao longo desses trinta anos.
Numa das mais recentes, a escritora respondeu a um jornalista que postara o vídeo conspiratório do presidente Jair Bolsonaro dizendo que a vacina da Pfizer contra a covid-19 nos transformaria em jacarés. Segundo ela, o jornalista distorceu a fala do presidente. O universo Twitter veio abaixo com brasileiros checando postagens antigas de Naomi e descobrindo que a autora é negacionista e antivacina e ainda tem passados transfóbicos além de acusações de distorções de dados em sua última obra "Outrages" (2019).
Em entrevista exclusiva na ultima sexta-feira (12) a Universa, Naomi reforçou o seu negacionismo ao mesmo tempo em que abriu um campo para que suas novas contradições fossem debatidas mas, principalmente, esclarecidas. Ao ler suas falas uma impressão peculiar permanece: alguns dos questionamentos da escritora seriam éticos se não fosse o fato de estarmos vivendo em um novo contexto de pandemia que só no Brasil já causou, até o momento, mais de 270 mil mortes, com a média móvel batendo recortes novos todos os dias.
Quando Naomi diz: 'Toda tirania quer que fiquemos sozinhos em casa, quer ter certeza de que não podemos nos reunir para protestar e nos manter sob controle', ela não está errada. Ou: 'É ruim para as mulheres estarem isoladas em casa', de fato são afirmações importantes. Mas que perdem sentido no cenário atual.
É uma realidade que a violência doméstica contra as mulheres aumentou e os protestos diminuíram desde o início da pandemia do coronavírus. A impressão é que a população tem se mantido inerte frente a tantos novos e antigos problemas. Desde que o vírus chegou ao Brasil, mulheres que tinham histórico de sofrer agressões passaram a correr mais risco de vida por serem obrigadas a permanecerem mais tempo em casa, muitas vezes com seus próprios agressores. Casos de feminicídio durante a pandemia no Brasil cresceram 22% em 12 estados, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Naomi tem toda a razão sobre a posição das mulheres no lar durante a pandemia e como isso resultou em um aumento na violência doméstica. Mas o problema é o pulo de raciocínio que se junta com o negacionismo. Em conversa comigo, a pesquisadora e jornalista feminista e doutoranda em violência de gênero pela Universidade de York no Reino Unido, Nicole Froio, me disse: "Então devemos todos voltar ao trabalho e sair de casa? Isso não resolve o problema de mulheres estarem em relações amorosas com seus agressores. É uma escolha binária e individual que também ignora a violência sofrida por mulheres no próprio âmbito do trabalho sendo que no eixo norte-americano acabamos de ter várias pequenas revoluções sobre este tipo de violência com o movimento #MeToo. Por aqui, já vemos alguns buracos no pensamento dela - as soluções são de curto prazo, baseadas em acumular capital para cada mulher individual se 'liberar' do seu marido, como se esse fosse o único tipo de violência sofrida por mulheres."
Mas a verdade é que a covid-19 também devastou a população feminina - principalmente mulheres negras e pobres nos Estados Unidos - e é por isso também que o discurso de Naomi se mostra raso e negacionista. "É fácil para Wolf usar esses argumentos quando ela é uma mulher branca norte-americana que pode pagar um convênio de saúde bom e não sofre racismo hospitalar, ou no caso do Brasil, o risco do sistema público ficar sobrecarregado. Ou seja, as soluções de Wolf são muito simples e não condizem com a realidade, simplesmente seguem a ideologia individualista e capitalista do feminismo liberal, que diz que tudo é solucionado com liberação financeira de mulheres individuais (o que não é uma opção para todas)", analisa Nicole.
É importante definirmos como o discurso feminista liberal se encaixa numa sociedade desigual, já que existem diversas definições sobre a mesma vertente do movimento político. Uma delas, é que esse discurso localiza o subjugo das mulheres como um problema, porém a solução proposta não são reivindicações coletivas mas sim individuais e capitalistas.
Então, existem pontos onde o feminismo liberal e o negacionismo da pandemia se encontram, pois os dois se baseiam no benefício e vantagem do prazer e do objetivo individual, usando discursos coletivos de forma superficial.
Feminismo liberal
Pode ser considerado o feminismo mais antigo, surgiu na Revolução Francesa (século XIX), com Mary Wollstonecraft em "Reinvindicação dos Direitos das Mulheres". O movimento feminista liberal vertente tem como objetivo promover a igualdade entre homens e mulheres por vias institucionais de forma gradativa. O foco não é modificar as estruturas, mas inserir as mulheres dentro delas. Por isso, é uma vertente que recebe críticas por atuar numa agenda de equiparação de direitos, mas sem um enfrentamento às desigualdades, exploração do trabalho e ao capitalismo.
O que é incrível de ser analisado também é como o discurso de Naomi se torna binário. Claro que a escritora está certa quando afirma que 'mulheres precisam umas das outras', mas ela usa esse argumento e pula para uma lógica negacionista logo depois. Existem formas de estarmos juntas em segurança em âmbito digital ou com o distanciamento social, ou com máscaras, que não são negacionistas e que tem eficácia comprovada pela Organização Mundial da Saúde.
Pessoalmente não sou contra perspectivas feministas pessoais que se centram em experiências de uma mulher específica e não vejo problema em universalizar algumas narrativas. A cineasta Helena Solberg, por exemplo, fazia filmes documentários partindo da própria particularidade dela também falando para mulheres brancas de classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro, mas ao mesmo tempo, talvez seja preciso deixar isso claro para quem consome quando o assunto é político como as obras de Naomi se intencionam ser. O problema ocorre quando se começa a presumir que uma narrativa pessoal é a narrativa de todas as mulheres, principalmente se a mulher em questão tem certos privilégios.
É impossível deslegitimar a importância das reflexões que 'O Mito da Beleza' trouxe ao feminismo, mas é possível sermos críticos à autora ao mesmo tempo em que, como humanidade, aprendamos a conviver com as nossas próprias dualidades. Não endeusar nossos ídolos é um desafio quando nos apegamos a suas obras mas é preciso lidar com as contradições porque fazem parte do que é um ser humano.
Podemos talvez enxergar "O Mito da Beleza" e tantas outras obras feministas como uma pequena parte de um todo. Um todo que é coletivo, de vozes femininas que se complementam ou se contradizem - ou seja, as questões feministas nunca estão respondidas ou solucionadas e às vezes as nossas heroínas respondem de formas que não são aceitáveis. E às vezes podemos até encontrar ecos desses posicionamentos nas obras anteriores. Quase ninguém aceita suas próprias contradições e as contradições humanas do outro. É parte do ego masculino não reconhecê-las e não aceitá-las.
O histórico de respeitabilidade de Naomi dá a ela uma estrutura e ajuda a avançar suas teorias da conspiração mais longe do que o faria de outro lugar no mercado, inclusive na mídia. Isso não quer dizer que todo o trabalho anterior da escritora deva ser descartado com base nessas postagens dela, mas sim encorajar outros a ver o contexto mais amplo de Naomi e seus pensamentos pessoais.
Em outras palavras, é importante para os leitores que podem encontrar as ideias de Wolf compreender a distinção entre seu trabalho anterior, que cresceu em seus méritos, e suas teorias de conspiração mais recentes, que são mentirosas, figurativas, prejudiciais e perigosas.
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