Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Tatiane Spitzner: até quando tentarão culpar vítima pela sua própria morte?
Na última semana, após inúmeros adiamentos, ocorreu o julgamento de Luis Felipe Manvailer pelo assassinato de sua mulher, Tatiane Spitzner, mais uma vítima de feminicídio no Brasil. Nesta segunda (10), Manvailer foi condenado a 31 anos e 9 meses de prisão. Os indicativos da morte de Tatiane ilustram e reforçam a vexatória estatística internacional que coloca o Brasil em 5º lugar no ranking dos países que mais matam mulheres no mundo.
Tatiane era uma jovem advogada de 29 anos que, mesmo sendo de classe média alta, não estava livre da violência cometida por seu marido -- o que levou-a à morte por feminicídio. Ela foi encontrada morta, em 2018, após uma queda do quarto andar do prédio em que morava com Manvailer, em Guarapuava, no Paraná. Momentos antes da morte, câmeras do prédio em que o casal morava registraram cenas em que Tatiane era perseguida e agredida violentamente pelo marido no estacionamento e no elevador.
O julgamento de Manvailer foi marcado por inúmeras questões simbólicas a delimitar o ritual de violência que, mesmo após a morte, acompanha a vítima. Os sete jurados, todos homens, sorteados para integrar o Conselho de Sentença, traduziriam em seus votos a forma de ver e de sentir da sociedade, mais uma vez normalizada pela perspectiva masculina sobre a morte daquela mulher.
Noutra perspectiva, na ritualística do Tribunal do Júri, a defesa de Manvailer tentou, obviamente, colocar a vítima ao banco dos réus, tentando atribuir à pessoa de Tatiane a postura de mulher ciumenta, desequilibrada e invasiva, como se houvesse uma forma de justificar o porquê de sua morte
E ainda, durante o júri, a sociedade pôde presenciar a agressão praticada pelo advogado de defesa de Manvailer, o advogado Cláudio Dalledone Junior que, em nome de suposta reconstituição do crime de esganadura, fez de sua colega de trabalho e subordinada hierarquicamente objeto para tentar demonstrar que o ato violento praticado pelo réu não teria sido capaz de causar a morte da vítima.
A esganadura causou lesão corporal à advogada que fazia às vezes de Tatiane e não há consentimento que afaste essa prática criminosa. A dignidade humana não é disponível. Também a advogada, em que pese ainda não ter compreendido, foi vítima do machismo, em plena sessão do Tribunal.
O que se observa, portanto, é que infelizmente, ainda parece natural os ciclos outros de violência que se estabelecem às mulheres para que homens sejam defendidos dos seus atos. Apesar dos inúmeros atos sequenciais de violência ocorridos na sessão de julgamento destinados à vítima Tatiane, à sua memória, aos seus familiares, aos amigos e à sociedade como um todo, o réu foi condenado a 31 anos de reclusão, sem o direito de recorrer em liberdade.
Quatro jurados homens que configuraram a maioria no julgamento, mesmo diante do cenário ainda muito desfavorável e violento às mulheres, disseram não ao feminicídio, de modo a demonstrar que a violência sistemática e generalizada contra as mulheres não encontrará lugar de tolerância ou de naturalização junto à sociedade e ao sistema de Justiça.
E essa mudança de paradigma, nas palavras da brilhante colunista de Universa, a jurista Isabela Del Monde, deve ser atribuída ao ativismo jurídico feminista.
Importante destacar ainda que, para além da manifestação dos jurados, o juiz que proferiu a sentença também atuou de forma a rechaçar o feminicídio, atribuindo à pena na medida esperada ao réu, agora condenado. Evidente que nada irá reparar a dor pela perda de Tatiane, mas o posicionamento firme e coerente do Judiciário, reconhecido como legítimo para a imposição de sanção penal, se mostrava e se mostra essencial na responsabilização de feminicídas.
O juiz, ao fixar a pena, reconheceu diversas circunstâncias judiciais desfavoráveis ao réu (culpabilidade, personalidade, circunstâncias e consequências do crime) e por essa razão, acertadamente, aumentou a pena na 1ª fase da fixação.
O magistrado reconheceu ainda as circunstâncias qualificadoras do crime de homicídio (motivo fútil, meio cruel e crime praticado contra a mulher em razão do gênero feminino — feminicídio) e novo aumento, também acertado, foi imposto na 2ª fase de fixação da pena, o que elevou a pena aos 30 anos de reclusão — a máxima para o crime de feminicídio. Manvailer também foi condenado por fraude processual por limpar vestígios de sangue de Tatiane sendo condenado por esse crime a 1 ano, 9 meses e 18 dias, sendo a pena definitiva fixada em 31 anos, 9 meses e 18 dias.
A sociedade, por meio dos jurados, bem como o Judiciário, por meio do juiz, disseram um basta ao feminicídio!
Uma vida perdida não poderá ser restituída, mas o reconhecimento da responsabilização de homens que praticam crimes contra as mulheres nos mostra que estamos no caminho certo, ao encontro do avanço civilizatório, em que nossos corpos não serão mais objetos nas mãos de homens, que não mais poderão decidir sobre as nossas vidas ou mortes.
* Claudia Patricia de Luna é advogada especialista em gênero e violências e presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB;, Priscila Pamela C. dos Santos é advogada criminal e especialista em justiça, gênero e direitos humanos das mulheres pela USP (Universidade de São Paulo)
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