Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por Benny Briolly e Marielle, não farão mais política sem nós
Encaro o processo de renovação dos atores e atrizes políticas de nosso país e do mundo como um processo que não surge nos processos eleitorais. Surge da retomada das ruas como método de luta política, à esquerda e à direita, desde antes de 2013. Desde antes das importantíssimas e contraditórias Jornadas de Junho, mas que, nessa ocasião, explicitaram um sentimento que ali começava a florescer: a demanda por um protagonismo representativo por parte dos setores historicamente excluídos dos processos de decisões políticas.
Desde então, lutas históricas que já vinham sendo travadas há muito anos, conquistaram as novas gerações e foram atualizadas: nós, jovens, usuários dos serviços públicos de transporte, para a luta contra o aumento das passagens, de educação (com os jovens secundaristas universitários que ocuparam suas escolas e universidades), mulheres (na primavera feminista), LGBTs, na luta por seus direitos, negras e negros, contra os massacres, o encarceramento em massa, o genocídio da população negra, com o surgimento do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), contra a violação de direitos humanos nas favelas e comunidades, a explosão da luta pela moradia digna, com movimentos como o MTST etc.
Como era de se esperar, a mesma retomada e renovação de quadros aconteceu também à direita, com suas pautas e interpretações da realidade bem características, fomentadas por discursos e narrativas vindas da grande mídia e da elite do nosso país e do mundo: surgiram novos agrupamentos e agendas políticas conservadoras e neoliberais, como oposição ao protagonismo dos grupos sociais "minoritários" e à esquerda: a Escola sem Partido, a luta contra uma suposta "ideologia de gênero", a hipocrisia do "Todas as Vidas Importam", como se fossemos nós, movimento negro, pobres, periféricos, que tivéssemos criado a divisão racista e classista da sociedade.
Cada uma dessas lutas nas ruas desenvolveu, em nosso país, mas também em outros lugares do mundo, uma renovação na representação política, seja na diversidade de corpos, mas também de pautas e programas, projetos políticos. Nos Estados Unidos, já vemos há duas eleições serem eleitas mulheres negras, muçulmanas, latinas, como Alexandra Ocasio-Cortez, Cory Bush, Ilhan Omar, Rashida Tlaib, com programas de combate radical às desigualdades sociais, raciais, de gênero, pensando política de
maneira interseccional e questionando os limites do capitalismo selvagem. Essas mulheres sofrem todo tipo de ameaças, ataques, questionamentos sobre suas capacidades e qualidades políticas, em especial com o advento de grupos supremacistas
brancos, xenofóbicos e machistas.
No Brasil, os processos de retomada política desenvolveram de maneira muito rápida (mas bastante atrasada do ponto de vista histórico) uma renovação qualitativa nos espaços políticos institucionais. Nos últimos três processos eleitorais, elegemos Marielle Franco, mulher negra, bissexual, da favela da Maré, como a vereadora mais bem votada do Rio de Janeiro.
Talíria Petrone e Áurea Carolina, vereadoras mais bem votadas de suas cidades e depois deputadas federais, Sâmia Bomfim, como uma das deputadas federais mais bem votadas do país, com sua combatividade, Vivi Reis, mulher negra e amazônida, como vereadora mais votada de Belém.
Também eu, Erika Hilton, a primeira mulher trans e negra eleita para a Câmara Municipal de São Paulo e a mulher mais bem votada para o Legislativo em 2020, entre todas as candidatas, de todos os partidos, junto com Luana Alves e Elaine Mineiro, três vereadoras negras eleitas em São Paulo, após mais de 12 anos sem nenhuma mulher negra eleita na cidade, a eleição de três deputadas estaduais negras, tanto na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro como de São Paulo, Benny Briolly, mulher negra e trans, como a primeira e mais bem votada de sua cidade, Niterói, Duda Salabert, mulher trans e a mais votada da história de Belo Horizonte.
Tudo isso, além de termos eleito, pela primeira vez na história, mulheres negras em várias cidades, inclusive como as mais votadas: Curitiba, Joinville, Cuiabá, Vitória, Recife, Uberlândia.
Obviamente nossas eleições históricas e sem precedentes não passaram despercebidas, não só porque somos corpos dissidentes e que nunca haviam sido convidados para as "festas da democracia" da branquitude, da cisheteronormatividade, nos palácios de poder, mas sim pelo projeto político que carregamos junto conosco, um projeto de denúncia e proposição de mudanças radicais na socialização pactuada no pós-ditadura
"Não basta quererem políticas públicas, como cotas, moradia, leis contra a violência de gênero, agora ainda querem ocupar nossos espaços? Querem formular políticas?" devem pensar os que se acham donos do poder.
Não poucas vezes, como foi Marielle, o status quo da política, os herdeiros das classes dominantes e escravocratas, tentam nos interromper e deslegitimar enquanto mulheres eleitas (e recordistas de votos). Não poucas vezes somos ameaçadas de morte,
temos nossa segurança colocada em risco para que recuemos de nossas tarefas históricas.
Minha irmã de lutas, Marielle, foi assassinada brutalmente nessa tentativa de interromper nosso processo de reintegração de posse dos espaços que são nossos, mas que sempre nos foram negados. Eu mesma, durante a eleição, sofri diversos ataques e desde que me elegi, dezenas de ofensas, ameaças e perseguições, que agora estão sendo investigadas pela justiça.
Enquanto escrevo esse artigo, minha companheira Benny, vereadora negra e trans, a mais votada de Niterói, foi obrigada a sair do país por ameaças a sua integridade física. Mais uma, como Jean Wyllys, impossibilitado de exercer a função para qual foi democraticamente eleito
Contudo, o que os senhores do poder não contavam e ainda não conseguem compreender é que não ocupamos esses espaços por nós mesmas, apenas, pensando em projetos individuais.
Somos causas e consequências de lutas ancestrais, agora protagonizadas por nós, mas que são sobre um mar de jovens, mulheres, bichas pretas, travestis, trabalhadores informais e precarizados de aplicativos, desempregados, mães que perderam seus filhos pela fome, pela polícia, pela desigualdade social. Não nos contentamos em sermos as primeiras ou as mais bem votadas. Nossa missão é muito maior do que isso
Estamos aqui para seguir abrindo caminho, escancarando as portas e acabando com a festa dos que nos julgavam inaptas para estarem ocupando esses espaços. Podem tentar nos atrasar, nos interromper, mas fiquem atentos. Nosso processo é irreversível, imparável: não seremos interrompidas. Não mais farão política sem nós.
*Erika Hilton é ativista dos direitos humanos, presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo e a vereadora mais bem votada do país nas eleições de 2020, pelo PSOL
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