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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Na torcida de futebol que virou a CPI da Covid, o machismo entrou em campo

Da esq. para a dir.: as senadoras Eliziane Gama (Cidadania-MA), Leila Barros (PSB-DF) e Simone Tebet (MDB-MS) argumentam com o senador Ciro Nogueira (PP-PI) em sessão da CPI da Covid - Jefferson Rudy/Agência Senado
Da esq. para a dir.: as senadoras Eliziane Gama (Cidadania-MA), Leila Barros (PSB-DF) e Simone Tebet (MDB-MS) argumentam com o senador Ciro Nogueira (PP-PI) em sessão da CPI da Covid Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado
Lilia Moritz Schwarcz

Colaboração para Universa

21/05/2021 04h00

A CPI da Covid virou torcida de futebol. Está todo mundo de olho nos resultados dessa partida que pretende avaliar a política do Palácio do Planalto no que se refere à prevenção da pandemia de covid-19. Existe, todavia, outro fato importante nessa comissão, que tem sido sistematicamente deixado de fora, ou melhor, vem sendo propositadamente negligenciado. O ritual de machismo.

Em primeiro lugar, nenhuma senadora compõe a CPI, a despeito da bancada feminina ter direito a dela participar. Até o momento, também, nenhuma mulher ainda depôs. Na semana que vem estão previstos os depoimentos da secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, a famosa "Capitã Cloroquina", e da médica Nise Yamaguchi — e elas deverão defender o "tratamento precoce", condenado pelas autoridades sanitárias de todo o mundo. Mas há um escandaloso segundo lugar.

Não há um dia sequer que os senadores deixem de interromper senadoras no meio de suas falas, lhes peçam "calma", cortem suas palavras ou as desqualifiquem moralmente. E sem motivo algum, a não ser o despeito diante da forma como elas vêm se destacando nas sessões

Na primeira semana da CPI, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) interrompeu a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), impedindo-a de concluir seu questionamento. Foi até necessário que ela reclamasse publicamente. "Não fique me olhando dessa forma achando que vai me intimidar", disse ela. E de fato não se intimidou.

Na semana passada, foi a vez do senador Marcos Rogério (DEM-RO) interromper a senadora Leila Barros (PSB-DF), além de imediatamente pedir, com expressão de superioridade, para que ela se "acalmasse". Ele, que faz parte do núcleo duro do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), é a favor da cloroquina e já defendeu sessão presencial, é que precisa manter a calma — e a compostura.

Kátia Abreu (PP-TO), primeira mulher a presidir a Comissão de Relações Exteriores do Senado (CRE), fez críticas contundentes ao ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo na terça (18). Tão contundentes que a senadora ganhou a mídia e a opinião pública. Abreu definiu a postura de Araújo durante a pandemia como a de um "negacionista compulsivo", além de dizer que ele "nos conduziu para o caos".

O que poucos viram foi que, nos seus 20 minutos de fala, além de ter sido interrompida pelo ex-ministro, também foi obrigada a ouvir o senador Marcos Rogério (DEM-RO) dizer que não precisava "ficar nervosa". Detalhe importante, ela não estava nervosa.

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A senadora Kátia Abreu (PP-TO) em sessão da CPI da Covid
Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Diante dos ataques sucessivos de Ernesto Araújo, Simone Tebet (MDB-MS) saiu em defesa da colega e tomou repreensão de senadores que a avisaram que não devia "falar dessa maneira". Aliás, o próprio ex-ministro tratou de interromper a senadora algumas vezes.

Nesta quinta (20), o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), voltou-se para a senadora Eliziane Gama com a seguinte advertência: "Você também fica aí gritando". Outro detalhe importante, ela não estava gritando. Para completar, o presidente da comissão levantou-se e saiu da sessão enquanto ela ainda discursava.

Costuma-se dizer que quando algo de estranho acontece uma vez, só pode ser coincidência. Quando acontece duas vezes, acende-se o sinal de alerta. Já quando ocorre cotidianamente fica evidente que estamos diante de um padrão. Um padrão machista de comportamento que procura subordinar mulheres a partir de estereótipos como falta de calma, irracionalidade e voz elevada: gritaria nos termos do senso comum. A lei é dos dois pesos para duas medidas: quando um homem fala alto é valente; quando uma mulher eleva a voz só pode estar nervosa, histérica, ou dando chilique

De tão recorrente, tal tipo de caricatura fácil já ganhou nome nos Estados Unidos: "man talk", conversa de homem. Ela se refere a esse hábito masculino e machista de com frequência não permitir que as mulheres desenvolvam seus pensamentos, vencendo-as na base do escárnio, do atropelo ou da elevação no tom de voz.

E há todo um dicionário de termos para descrever diferentes situações desse tipo. "Manterrupting" refere-se a circunstâncias em que um homem interrompe constantemente uma mulher, não permitindo que ela consiga concluir sua frase. A palavra é formada da junção de "man" (homem) e "interrupting" (interrupção). "Mansplaining" é utilizada quando um homem dedica seu tempo para explicar a uma mulher, de forma didática, algo que é óbvio, como se ela fosse incapaz de entender de outra maneira. O termo é feito da junção de "man" (homem) e "explaining" (explicar).

Quando um homem se apropria da mesma ideia já expressa por uma mulher, levando os créditos no lugar dela, chama-se a má atitude de "bropriating". O termo é uma junção de "bro" (de brother, irmão, mano) e "appropriating" (apropriação). Por fim, "gaslighting" é um nome derivado do termo inglês "gaslight" — a luz [inconstante] do candeeiro a gás. Esse é um tipo de abuso psicológico que leva uma mulher a achar que está sempre equivocada, quando está, muitas vezes, certa. Trata-se de uma forma perversa de fazer uma mulher duvidar do seu senso de justiça, de seu raciocínio, das suas próprias memórias e até da própria sanidade.

Há também frases masculinas que denotam esse tipo de comportamento masculino. "Você está exagerando"; "Pare de surtar"; "Você está louca" são exemplos de tentativas de desmerecer colegas, companheiras, namoradas, irmãs e esposas na base da imposição masculina.

Esse tipo de comportamento afeta a todos: homens e mulheres. Mas as mulheres são as maiores vítimas, ainda mais num ambiente masculinizado como o Senado brasileiro que tem nesta Legislatura uma bancada feminina de apenas 11 senadoras. Isso corresponde a 14,8% do total de 81 cadeiras, percentual bem abaixo da proporção de mulheres na população brasileira, em que elas correspondem à mais da metade da população.

Por essas e por outras é que a CPI da Covid começa a ganhar um segundo nome, nada elogioso: a CPI do Machismo.

*Lilia Moritz Schwarcz é antropóloga, historiadora, professora da USP (Universidade de São Paulo) e de Princeton e curadora-adjunta para histórias e narrativas do Masp (Museu de Arte de São Paulo)