Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Abraji: Rotina de ameaças e linchamento às mulheres jornalistas é diária
Chorume, prostituta profissional, porca mentirosa, velhota ordinária, filha da puta maldita, cadela comunista, vaca, monstra, cheiradora de pó, égua, piranha rampeira, putinha de esquerda, vadia, bruxa, macaca, projeto escuro de blogueira, tosca, plastificada, pelancuda. É assim que milícias virtuais se referem às mulheres jornalistas no exercício da profissão. Na última semana, a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) vem registrando a brutalidade dos ataques a colunistas, apresentadoras e repórteres. O linchamento virtual coincide com o acirramento da crise política à luz dos trabalhos da CPI da Covid.
Apenas em 2021, o monitoramento de violações à liberdade de imprensa feito pela Abraji registrou ao menos 15 casos de mulheres jornalistas que sofreram ataques, entre agressões físicas, discursos estigmatizantes e campanhas sistemáticas de desprestígio realizadas pelas redes sociais.
Ofensas misóginas, comentários pejorativos e ameaças de morte levaram mulheres a fechar temporariamente suas redes sociais só por exercer a profissão de jornalista. Muitos casos chegam à Abraji com um pedido de socorro acompanhado do medo de denunciar. Há sinais claros de subnotificação, sobretudo fora das grandes capitais e em cidades onde o banditismo e as esferas de poder estão imbricados.
A cada hora, o Brasil recebe 12 denúncias de violência contra a mulher, totalizando 105.821 registros em 2020 feitos pelos canais Disque 100 e Ligue 180, do governo federal. Também como um reflexo do pensamento machista impregnado na sociedade, as mulheres não são incentivadas a denunciar seus agressores ou divulgar uma situação de violência que tenham passado. Muitas vezes as ofensas se repetem quando elas vêm a público reportar o abuso.
Campanhas difamatórias e assédio contra repórteres são uma realidade global. Relatório recente da Unesco produzido pelo Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ, na sigla em inglês), mostrou que a violência virtual é a arma mais utilizada para intimidar o trabalho de mulheres jornalistas. Sete em cada dez respondentes, nos 125 países pesquisados, relataram violações do tipo.
Diferentemente dos ataques aos homens, as agressões às mulheres quase sempre têm viés sexual. "Em geral, elas possuem conotação preconceituosa: dizem que as jornalistas são feias, gordas, velhas ou prostitutas; expõem seus filhos, maridos ou pais", lembrou Patricia Campos Mello, em artigo publicado na "Folha de S. Paulo". Campos Mello, uma das repórteres mais premiadas do Brasil e do mundo, é alvo constante de hostilidades, muitas delas por parte do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
O racismo se manifesta de forma clara. Basília Rodrigues, colunista política da CNN Brasil, já foi chamada de burra, gorda e "macacavilha", mistura de macaca e Mulher Maravilha.
Carla Vilhena, apresentadora do mesmo canal pago, é uma das vítimas mais recentes. Um homem se empenhou em desmoralizá-la e agredi-la, depois que a jornalista comentou o depoimento, na CPI da Covid, do presidente da Pfizer na América Latina. As ofensas se intensificaram inclusive depois que Vilhena tornou públicos os ataques e defendeu o trabalho da imprensa durante a pandemia. O mesmo perfil disparou palavras de baixo calão contra Monalisa Perrone, também da CNN.
Daniela Lima, também da CNN, foi intimidada e chamada de "filha da p..." depois de comentar sobre a operação da Polícia Civil no Jacarezinho, considerada a mais letal da história do Rio de Janeiro.
O mesmo perfil no Twitter deu a entender que Juliana Dal Piva, colunista do UOL, correria risco de vida por ter mencionado o ex-ministro Eduardo Pazuello em um post.
A interpretação distorcida da liberdade de expressão e a difusão desses ataques expõem um desafio: qual a responsabilidade das plataformas na difusão, moderação e eventual eliminação dessas ofensas?
A rotina de humilhação imposta às mulheres jornalistas é diária. Desde dezembro de 2020, Mariliz Pereira Jorge, colunista da "Folha de S. Paulo", sofre assédio.
"Os ataques têm sido articulados e estão cada vez mais organizados. Se escrevo um artigo ou posto algo nas redes sociais que desagrada, os bolsonaristas distribuem prints dos trechos em grupos, mandam para sites que apoiam o governo, parlamentares governistas e militância. A partir daí, toma conta das redes em perfis com milhares de seguidores. É possível perceber o movimento, porque os ataques vêm como uma avalanche e também cessam quase que ao mesmo tempo. Como o bolsonarismo se alimenta do ódio, todo dia tem um alvo diferente", diz Mariliz à Abraji.
"Hoje, lido melhor com esses momentos de tensão, restrinjo os comentários em horas mais críticas. Tomo alguns cuidados extras, cheguei a sair do Rio numa situação em que parecia que a violência sairia do campo virtual. Sei que vazaram meu endereço, por exemplo. O objetivo deles é intimidação. Claro que é cansativo lidar com isso, mas não vão me calar."
Cartilha e monitoramento específico de gênero
O aumento de ataques virtuais contra profissionais da imprensa motivou a criação de um convênio entre a Abraji e o Observatório da Liberdade de Imprensa do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Na cartilha preparada pelas duas organizações, são explicadas as formas de assédio e como acionar o convênio, enviando e-mail à Abraji com provas documentais do (s) ataque (s).
Com apoio da Unesco, a Abraji também está desenvolvendo um projeto para monitorar ataques específicos às jornalistas mulheres. A iniciativa deriva do monitoramento de ataques a jornalistas que é feito pela associação usando os indicadores da rede Voces Del Sur, que coleta alertas de violações à liberdade de imprensa em 13 países da América Latina.
A partir da análise dos dados de 2020, constatou-se que tem crescido o número de episódios de violações dos direitos das mulheres jornalistas, sobretudo no meio digital.
Em 2021, a metodologia do monitoramento está sendo aperfeiçoada para comportar também indicadores de violência de gênero como uma variável transversal dos ataques feitos contra a imprensa.
As agressões a mulheres jornalistas não se limitam às redes sociais. Em 2020, 44% dos ataques registrados que tiveram uma mulher como vítima eram relacionados a ameaças, agressões físicas ou verbais, destruição de equipamento ou obstrução de seu trabalho. O caso mais recente ocorreu com uma repórter que foi agarrada pelo pescoço durante uma confusão pós-jogo pelo campeonato piauiense de futebol.
Infelizmente, na esfera virtual, era esperado que misoginia, machismo, impunidade e preconceito se convertessem em uma mistura explosiva no Brasil. São necessárias medidas eficazes de proteção para jornalistas, responsabilização dos agressores e comprometimento dos poderes institucionais em repudiar esses ataques e não amplificá-los, como têm feito muitas autoridades públicas, a começar pelo presidente da República.
Responder com ataques chulos e xingamentos, sobretudo quando os autores das reportagens são mulheres, demonstra, além de falta de educação, desprezo às regras básicas da democracia.
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*Cristina Zahar é secretária-executiva da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo); Letícia Kleim monitora os casos de violência contra jornalistas na Abraji; e Maria Esperidião é gerente-executiva da Abraji
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