Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Ronaldo, até quando você seguirá desrespeitando mulheres trans e travestis?
Prezado Ronaldo,
Este é um desabafo pessoal de uma mulher transexual que, desde 2008, tem sido obrigada a ler e escutar você, um ídolo do esporte, tratar mulheres trans e travestis de forma degradante, sub-humana.
Meu nome é Vivian Miranda, sou astrofísica da Universidade do Arizona e doutora em astronomia pela Universidade de Chicago. Além disto, sou mulher transexual com muito orgulho, mesmo sem ter sido sempre assim. Comportamentos como o seu, dominado por um preconceito escancarado, têm contribuído de forma determinante, para que processos de autoaceitação, como o que eu vivenciei, sejam longos e dolorosos.
Ronaldo, no esporte, você é e sempre será um ídolo para mim. Lembro-me como se fosse hoje a final do Brasil contra a Alemanha na Copa do Mundo de 2002. Seus gols foram espetaculares e sua liderança inspiradora. Você e o time do Brasil nos deram um orgulho de ser brasileiros, unindo uma nação pobre e sofrida, sentimento tão em falta nos dias atuais. Também me recordo o quanto chorei quando se falou que você poderia não jogar a final da Copa do Mundo de 1998. Como esportista, você estará sempre no coração de nós brasileiros, de forma majestosa.
Ronaldo, desde criança me enxergo como mulher transexual e astrofísica. Aos sete anos, já colecionava matérias de jornais sobre astronomia e vestia, escondida, as roupas da minha mãe.
Guardo até hoje com imenso carinho a reportagem de 2 de setembro de 1998 da revista "Veja" intitulada "Time de Estrelas", relatando as façanhas da astronomia brasileira. Muitos dos astrônomos citados naquela reportagem ainda pesquisam o universo ativamente, apesar do draconiano corte de verbas científicas que o Brasil infligiu à pesquisa acadêmica nos últimos anos. Tenho certeza de que você entende muito bem o poder do exemplo na busca pelos nossos sonhos, e, na astrofísica, a ciência brasileira sempre foi inspiradora.
Já com relação à minha identidade de gênero, a exposição midiática era oposta. Aos dez anos, quando ganhei meu primeiro computador e comecei a pesquisar sobre o tema na internet, fiquei horrorizada com os resultados. Fóruns virtuais, alguns online até hoje, tratam as mulheres transexuais como mercadoria sub-humana. E mesmo com todo esse show de horrores, admito que os dois momentos em que mais tive vergonha da minha identidade aconteceram durante (1) minha primeira confissão católica (2) e ao assistir à sua entrevista ao "Fantástico" (Globo) -- e depois em jornais -- sobre o episódio com a travesti Andréia Albertini, em 2008.
Sim, Ronaldo, a mulher que você humilha há 12 anos tem nome mesmo sendo raramente informado nas reportagens. Aliás essa falta de referência ao nome é mais uma constatação da forma humilhante como somos tratadas na sociedade brasileira. Andréia Albertini, uma linda mulher que batalhava pela sobrevivência, morreu de Aids em 2009, aos 22 anos, e não pode se defender de seus ataques nefastos.
A mãe dela, Sônia Maria Ribeiro, disse em entrevistas que a encontrou um dia "sentada no sofá sem forças para se mover".
Em 2009, mesmo com todos os avanços da medicina, uma travesti morre de forma brutal por causa de uma doença controlável com medicamentos gratuitos fornecidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) — a contragosto do atual presidente —, dada tamanha marginalidade da nossa comunidade.
Gosto de lembrar da Andréia como uma mulher linda e vaidosa. Ronaldo, eu me enxergava na Andréia, uma irmã de vida! Imagine a vergonha que você — ídolo do esporte — impôs a mim e a todas as travestis brasileiras ao afirmar naquela entrevista ao "Fantástico", em rede nacional, que não podia "esperar que essas pessoas tenham um comportamento correto, né?", tratando a Andréia no masculino e insinuando que travestis são, por definição, sinônimo de algo ruim, sem qualquer humanidade.
Ronaldo, não vou julgar seu ato de procurar sexo extraconjugal seja com mulheres cisgênero ou transgênero. No entanto, vou sempre levantar minha voz quando o foco das suas falas esteja no fato da Andréia ser uma travesti. Infelizmente, a Andréia não está presente neste universo para se defender da sua acusação de extorsão, sem qualquer prova. Nós, irmãs de vida, lutamos por ela!
Com todo respeito, prefiro acreditar nas palavras dela em 2008: "Estou confiante, eu sei que tenho a verdade. Ele vai vir e a gente termina de esclarecer". Mas você, Ronaldo, não compareceu à audiência judicial em que ela estava presente e não permitiu que ela se defendesse na sua frente — o direito ao contraditório é fundamental no Estado de Direito! Então, pare de fazer esta acusação! Isso é crime de injúria!
Ronaldo, termino este desabafo exigindo que você tenha mais respeito com as pessoas transgênero. Estamos em 2021, não faz sentido você continuar a depreciar minhas irmãs de vida. Nesta sexta (21) o UOL publicou a reportagem "Ronaldo liga álcool a episódio com travestis", que reproduziu a nefasta entrevista que Pedro Bial fez com você na véspera.
Bial pergunta se você quer "explicar" o que aconteceu no episódio com os três travestis, se referindo a Andréia e às outras irmãs no masculino. E sua resposta associar aquele encontro a uma consequência do álcool. Se eu enumerar todas as minhas críticas à entrevista do "Conversa com Bial", esta opinião se transformaria em um livro e já estou no limite de caracteres. Faltou tudo, até lembrar que você afirmou a outro programa da Globo, o "Fantástico", de forma categórica, que não bebeu o suficiente para "perder o raciocínio" naquela noite.
Esse tipo de entrevista que apela ao sensacionalismo só alimenta a masculinidade tóxica que torna o Brasil no país que mais mata pessoas transexuais do mundo inteiro. Minha solidariedade a todas as mulheres transexuais, com especial carinho àquelas que estão tentando sobreviver durante a pandemia por meio da prostituição.
E estendo a minha solidariedade às mulheres cisgênero, pois esse tipo de humilhação pública não é exclusividade das mulheres trans. Quem não se lembra do caso da Monica Lewinsky, humilhada covardemente com apenas 22 anos — idade semelhante a de Andréia — devido ao caso com Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos. Homens traem, e mulheres são humilhadas e mortas.
Aconselho a você e a quem mais tiver interesse, a procurar lideranças do movimento trans como Maite Schneider, Ariadne Ribeiro, Bruna Benevides, Jacqueline Gomes de Jesus, Daniela Mourão, Gabrielle Weber e muitas outras. Eduque-se, Ronaldo, pois, transfobia corresponde a crime de racismo, inafiançável.
Vivian
* Vivian Miranda é astrofísica e doutora em astronomia pela Universidade de Chicago, nos EUA, e única brasileira a participar de um projeto da Nasa para desenvolvimento de um satélite. Atualmente faz pós-doutorado e pesquisa na Universidade do Arizona e, em breve, será professora-adjunta de física da Universidade Stony Brook, de Nova York. É ganhadora do prêmio Leona Woods de 2019 devido a suas contribuições para área de cosmologia.