Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Motociata de Bolsonaro aconteceu no Dia dos Namorados, mas sem namoradas
Aconteceu muita coisa estranha na motociata do sábado passado, Dia dos Namorados. Convocada pelo governo Bolsonaro, ela ocorreu no dia 12 de junho como uma forma de reação à manifestação do dia 29 de maio, organizada pela oposição na avenida Paulista.
Chama atenção, em primeiro lugar, a seleção de classe contida num evento como esse: apenas pessoas motorizadas puderam acompanhar a manifestação, o que já indica uma certa prevalência econômica.
Por sinal, o presidente do sindicato dos motoboys e entregadores de aplicativo, Gilberto Almeida, o Gil, reclamou do desfile de motos dizendo que o presidente não pensa na categoria, negligencia vacinação e política de combustíveis. Denunciou, ainda, que a manifestação pró-governo não contou com a participação da categoria e foi composta principalmente por membros de clubes de motociclistas, com veículos de alto valor e usados principalmente para lazer.
Para terminar, afirmou que não existiam motivos para os motoboys comemorarem. Semanas antes do evento, o Ministério da Saúde recusou pedido do SindimotoSP de colocar a categoria entre os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização.
Mas as diferenças não eram apenas de classe. Chamou igualmente atenção a homogeneidade de sexo/ gênero, raça e geração. Para começar: havia muito poucas 'namoradas' participando. Pelo jeito, os 'namorados' acharam melhor seguir o seu líder maior e deixá-las sozinhas num sábado de sol.
Foram milhares de pessoas que percorreram ruas de São Paulo e um trecho da Rodovia dos Bandeirantes, com direito a discurso na frente do Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera; justamente, um patrimônio que vem sendo contestado por conta do papel desses personagens na história do Brasil. Mais do que "estender fronteiras", eles aprisionaram indígenas e escravizados, e compuseram exércitos mercenários.
Nada combinava mais com a multidão, vestida de preto, ostentando jaquetas da mesma cor e um linguajar de corpo viril, do que essa estátua onde se destacam homens portugueses (em seus cavalos), indígenas e negros (andando a pé) — num desfile de gênero, desigual e hierarquizado.
Era fácil notar, através das fotos e vídeos, como a maioria dos participantes eram homens na faixa dos 40 anos, e brancos. Mulheres, apenas nas garupas dos maridos e namorados. A própria deputada bolsonarista, Carla Zambelli (PSL-SP), compareceu na garupa do esposo.
No vídeo que divulgou nas suas redes sociais, ela diz: "Estamos aqui esperando a linha andar". O marido a interrompe deixando claro que é ele o "piloto". Meio sem jeito, Zambelli retoma a fala para explicar que essa era uma "Motociata por Jesus" e "cristã pela liberdade, pelo direito de ir e vir".
Como a realidade é feita de símbolos, vamos lá analisar alguns. Em primeiro lugar, impressiona como não se tratava de uma manifestação laica; ela era religiosa e de um só credo: aquele do presidente e de seus seguidores.
Impressiona também o claro sequestro de conceitos: liberdade nesse caso é o direito de contaminar o outro; fazer com que a liberdade individual seja maior do que a liberdade cidadã de pensar na coletividade diante de uma pandemia que já matou 488 mil brasileiras e brasileiros. E detalhe, nada passageiro: todas as pessoas estavam basicamente sem máscara.
Liberdade para o quê, mesmo?
Motocicletas possantes são veículos que durante muito tempo ficaram exclusivamente associadas a homens, brancos que, por meio delas, desfilavam sua virilidade. Mussolini gostava de se expor ao "seu povo", sempre de moto, e o regime nazista fazia parada com os soldados arianos perfilados de modo a destacar a suástica nazista nos braços musculosos, os uniformes em tons de cinza, a masculinidade militar com suas botas, e, por fim, as motos; fiéis companheiras dos rapazes indomáveis.
Ao fundo da foto ao lado se sobressai o portão de Brandemburgo, no centro de Berlim, a mais antiga entrada da cidade, reconstruída no final do século 18 como um dos marcos mais conhecidos do país. Mais uma vez, a história serve como justificativa. No Brasil, através dos bandeirantes, e na Alemanha, por meio do símbolo do portão com seus cavalos, para justificar o presente e lhe dar ares de eternidade.
Coincidências históricas não são apenas coincidências. Designam intenções e retóricas do poder; nesse caso, regimes autoritários que preferem o discurso da ordem e da hierarquia aos princípios democráticos e pautados na horizontalidade de direitos.
Mas as especificidades da motociata continuam. Em reportagem de Fabio Castanho e Anahi Martinho publicada no UOL, algumas mulheres presentes foram entrevistadas, como uma cabeleireira de Rondônia que foi apoiar o presidente, ao lado do marido, mesmo sem ter conseguido alugar uma moto.
Outra, já nos seus 50 anos, vinda da zona leste de SP, xingava Lula, dizia que Bolsonaro "era lindo" e explicava que se juntara ao movimento com o objetivo de pegar uma carona com os motoqueiros. Todavia, como não estava de capacete, a paquera na manifestação não rolou. Um casal a menos no Dia dos Namorados. Uma outra moça compareceu com moto própria; era um triciclo todo decorado com bonecas, morcegos e caveiras. Contou que votou em Bolsonaro em 2018, mas que não o faria de novo; só estava lá por causa do "rolê das motos".
De toda maneira, o fato de podermos nomear algumas das poucas mulheres participantes, já revela como elas eram exceções que, nesse caso, não confirmavam a regra.
O próprio Bolsonaro não levou sua mulher, Michelle. Ladeado por seus simpatizantes, que adoram chamá-lo de "mito" e não de presidente, protagonizou a motociata com sua jaqueta de couro, capacete branco com a bandeira do Brasil, luvas pretas, veículo possante e igualmente escuro. Passeios de moto são muito geralmente formas de lazer masculinas. Brilhantes, com suas curvas, o barulho da velocidade, tudo alude ao modelo do macho, que não teme a rapidez, o perigo e o desafio.
O presidente também associou a manifestação à sua igreja e citou trecho da Bíblia: "Se te mostrares frouxo no dia da angústia, a tua força será pequena". E completou: "Não tem ninguém frouxo aqui, tá ok?".
Como se vê, tudo alude ao modelo masculino, misógino, que não usa máscaras para "não parecer maricas", que desafia o isolamento pois "ninguém os segura", e prefere remédio ineficaz a tomar vacina "no bracinho".
Pobre da Michele; ficou sem celebração de Dia dos Namorados. Mas como diz o ditado: "antes só do que mal acompanhada".
*Lilia Moritz Schwarcz é antropóloga, historiadora, professora da USP (Universidade de São Paulo) e de Princeton e curadora-adjunta para histórias e narrativas do Masp (Museu de Arte de São Paulo); é autora, com Flávio dos Santos Gomes e Jaime Lauriano, do recém-lançado "Enciclopédia Negra: Biografias Afro-Brasileiras" (ed. Companhia das Letras)
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