Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Britney Spears: sequestraram sua vida pelo ódio à mulher e venderam sua dor
Tenho ouvido muitos relatos sobre pais e mães abusivos, narcisistas, manipuladores em geral. Não creio que isso seja novo. Os modelos de relacionamentos familiares, principalmente entre pais e filhos, precisam ser revistos para que os resquícios da mentalidade provinciana do passado sejam erradicados.
"Eu apanhei dos meus pais e sobrevivi", dizem muitos que ainda não entenderam o eco perigoso que atitudes equivocadas ou excessivas na educação de crianças e adolescentes podem causar. Para essas pessoas é preciso um olho no olho e a pergunta: sobreviveu a que custo?
E cabe também um convite estendido a todos nós para analisar sob a luz da tríade da saúde mental (psiquiatria, psicologia e psicanálise) até que ponto o aumento de relatos de transtornos de ansiedade, depressão etc. estão intimamente relacionados às lacunas e distanciamentos que se abrem na relação entre pais e filhos. Inclusive, atualmente, temos discussões fluindo que nos permite questionamentos que antes eram tabus ou proibições.
Pais e mães erram. E podem errar, tendo em vista que pressões e tensionamentos naturais entre gerações se misturam aos problemas e carências que pessoas na condição de pai e mãe também carregam, como resultado dos equívocos e desvios que houve na relação com os seus respectivos pais e/ou responsáveis. É um ciclo que precisa ser rompido.
Uma das discussões que podem e precisam ter espaço expressivo é sobre os efeitos das opressões estruturais atuantes no cerne das famílias. Sim, precisamos falar sobre machismo, racismo, LGBTfobia, como elementos presentes que se somam e multiplicam aos problemas presentes nas relações familiares.
"Com que direito pai que nem dá suporte emocional à filha quer controlar seu corpo?"
O caso de Britney Spears é um case para discussão e reconhecimento do que pode estar ocorrendo agora, com a família ao lado ou com a nossa própria família. É fato que Britney passou por períodos de visível descontrole, conforme a mídia sensacionalista, que tem parcela expressiva de culpa pelo seu naturalizado "trabalho" de exploração do sofrimento humano, fez questão de usar para alavancar a venda de revistas e jornais e a audiência de programas de televisão.
Sequestraram a vida de Britney transformando seu calvário pessoal em produto e lucro. Tudo com toques grotescos de misoginia materializada por violências psicológicas irreparáveis.
Mas, ainda que o aparente descontrole emocional ou o desajuste comportamental de Britney fosse um problema que colocava sua vida em risco, naquele momento, de onde sai a ideia de que a tutela integral de uma pessoa é pedagógica ou paliativa para uma suposta proteção de sua integridade física, mental e moral? Sai dos delírios de poder masculino sob os quais vivemos e que se intensificam a partir de crenças errôneas consolidadas no senso comum, que confundem proteção com dominação.
O que Britney e todas as pessoas que passam ou que passaram por igual situação precisam não é de tutela integral e invasiva, mas sim de proteção, conforto e compreensão que somente uma estrutura afetiva adequada pode fornecer.
Outra atitude que chama atenção e não deixa dúvidas de que há uma influência da mentalidade patriarcal, que molda masculinidades dentro de uma lógica autoritária e predadora, é com relação ao impedimento e controle das funções reprodutivas de Britney, obrigada a colocar um DIU (dispositivo intrauterino). Com que direitos um pai que mal consegue dar suporte emocional a uma filha, estabelece esse tipo de controle físico de sua vida?
Evidente que existem questões de ordem jurídica e patrimonial mediando essa atitude tão radical mas, novamente, é preciso atentar para a linha que separa tentativa de proteção com desejo de dominação manifestado.
Masculinidades moldadas pela mentalidade patriarcal manifestam livremente e com total chancela social um desejo perigoso de controle de corpos que julgam inferiores, mesmo que, muitas vezes, sejam eles mesmos que inferiorizam esses corpos. Isso está na raiz da decisão de um homem pelo sexo forçado — vulgarmente chamado de estupro.
Nunca é sobre sexo, assim como não é sobre ter filhos — estes se transformarem em um "problema" a mais para ser administrado. É sobre relações desiguais de poder que formam a hierarquia de gênero e que, sendo estruturais, ou seja, presentes na construção de nossa sociedade, se pulverizam por todos os assuntos, inclusive os de ordem familiar e afetiva.
Muitos podem alegar que tudo que pai de Britney, Jamie Spears, fez foi por amor. E isso de maneira alguma pode ser desconsiderado, já que é uma relação entre pai e filha. Mas daí precisamos entrar em outra faceta do escopo das relações familiares: a romantização do amor.
O amor deixa de ser saudável quando se soma ao desejo de dominação característico das relações de poder desiguais. E para o bem das relações familiares saudáveis, precisamos entender que nem sempre os laços consanguíneos são suficientes para construir amores que não sejam destrutivos para os envolvidos.
Tampouco o amor neutraliza nossas fraquezas humanas inconfessáveis, que estão para além dos vínculos familiares, haja vista que, nas dinâmicas familiares podem existir toda sorte de conflitos motivados por inveja, cobiça, possessividade, egoísmos, ciúmes, entre outros elementos que são inerentes a nossa condição humana.
O fato é que Britney teve a vida saqueada como uma espécie de pedágio pago por ser bem-sucedida. E esse pedágio foi cobrado pela misoginia, tanto na relação com o público e a mídia, quanto nas relações amorosas (Justin Timberlake, Kevin Federlaine) e também, infelizmente, nas relações familiares (pai, irmão e demais familiares).
Que ela tenha força o bastante para ter sua vida de volta e sirva de exemplo para que mulheres entendam que o machismo não brinca em serviço.
*Joice Berth é escritora, urbanista, assessora política e psicanalista em formação; pesquisa direito à cidade, relações raciais e de gênero e é autora do terceiro livro da Coleção Feminismos Plurais, "Empoderamento" (Ed. Pólen/Selo Sueli Carneiro); foi apontada pela revista "Wired" Brasil como uma das 50 pessoas mais criativas da internet em 2020.
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