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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Aparelho que "tranca a boca" simboliza a desumanização da pessoa gorda

Dispositivo para "perda de peso" desenvolvido por pesquisadores da Nova Zelândia e Reino Unido - Divulgação
Dispositivo para "perda de peso" desenvolvido por pesquisadores da Nova Zelândia e Reino Unido Imagem: Divulgação
Pabyle Flauzino

Colaboração para Universa

01/07/2021 14h23

Em tempos de negacionismo científico, parece perigoso contestar a ciência, mas quando se trata da "ciência da obesidade", não ser crítico é permanecer ao lado do obscurantismo e da violência. Há alguns anos, pesquisadores e ativistas gordos já denunciam as violências epistêmicas cometidas por pesquisadores contra pessoas gordas em nome da "ciência e saúde". Mais recentemente, um grupo de pesquisadores da Nova Zelândia e Reino Unido divulgou um dispositivo intraoral, posicionado na arcada dentária, que "tranca a boca" e impede a ingestão de alimentos sólidos para a promoção da perda de peso.

O maior devaneio e violência da ideia é a venda da perda de peso como uma panaceia para a vida de pessoas gordas. Estima-se que 4 em cada 5 pessoas que perdem peso voltam ao peso inicial. O próprio estudo relatou um esperado reganho de peso ao final das duas semanas de intervenção e ainda sugeriu que a solução para este fato seja a reaplicação do dispositivo quantas vezes forem necessárias. É sério? Deixo um primeiro questionamento: até que ponto é ético submeter pessoas a um procedimento comprovadamente falho por múltiplas vezes?

Infelizmente, o risco não se limita à falta de ética do uso intermitente do aparelho, mas, sim, à perda e retorno do peso de forma cíclica, o que chamamos popularmente de efeito sanfona. Sabia que ele é associado a um maior risco de problemas cardíacos e mortalidade? Então, vale tudo para alcançar um determinado tipo de corpo? Não se trata de "saúde", se o processo coloca pessoas gordas em maior risco de perdê-la.

A falta de repúdio a um artigo como esse é fruto da cegueira causada pela gordofobia. Por gordofobia, entendemos toda forma de preconceito, estereótipos e discriminação contra pessoas gordas exclusivamente por serem gordas, cujas raízes remetem à supremacia branca e ao patriarcado.

É impossível olhar para a raiva aos corpos gordos sem associar classe, raça e gênero. Por isso, é simbólico que todas as participantes sejam do sexo feminino

Durante o uso do dispositivo, as mulheres relataram dificuldade para falar, se sentiram tensas, envergonhadas, insatisfeitas com a vida e evitaram os eventos familiares. Até aqui, nada de novo sob o sol ao submeter mulheres gordas ao silêncio, solidão e sentimentos autodepreciativos. Mas vamos aceitar?

Deixar um grupo marginalizado de "boca fechada" não é só sobre perda de peso, é também mais uma forma da afirmação de poder sobre quem de fato pode falar nesta sociedade. É sobre silenciamento e desumanização. Não comer um prato de comida não é só sobre "não comer comida", é sobre não sentir o merecimento de uma necessidade básica de sobrevivência, confraternização, cultura e identidade. Não se tem bolo de vó com dieta líquida. Não se tem boas memórias sozinha à mesa. Não existe jantar de negócios se a boca só abre dois milímetros.

O mundo é indigesto demais para que as mulheres apenas o engulam sem mastigá-lo. Não podemos regredir no direito de falar, gritar, cuspir e vomitar as violências que sofremos. A liberdade das mulheres começa pela boca

Falo enquanto mulher magra, crítica à ciência da "obesidade" e pesquisadora da gordofobia. Afirmo que este dispositivo não é útil, porque perda de peso não é uma solução mágica. Para falarmos em solução, precisamos começar pelo respeito à diversidade de corpos e a inclusão deles em todas as esferas sociais. Uma ciência sem conflito de interesses precisa ser real. Questionar, discutir e não tolerar a gordofobia é um dever de todos, porque essa é mais uma das violências que minam os direitos humanos.