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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Opinião: 'Vítima de violência sexual precisa ser acolhida, não de Bíblia'

Entrega de Bíblia às mulheres no hospital Pérola Byington foi reportada por Universa na quinta-feira (19); ONG feminista se manifesta sobre tema - Arquivo pessoal
Entrega de Bíblia às mulheres no hospital Pérola Byington foi reportada por Universa na quinta-feira (19); ONG feminista se manifesta sobre tema Imagem: Arquivo pessoal
Católicas Pelo Direito de Decidir

Colaboração para Universa

20/08/2021 16h49

Há um ano, a menina capixaba de apenas dez anos teve o acesso ao aborto legal previsto em lei negado - e passou por outras violências para conseguir recuperar o que sobrou de sua infância: aquela imagem de religiosos tentando impedir a sua entrada no hospital que a acolheu e chamando os profissionais de saúde de "assassinos", ainda ecoa na memória.

Agora, a notícia de que uma jovem recebeu um exemplar de uma Bíblia enquanto esperava por um atendimento — Universa contou que ela buscou o sistema de saúde para realizar o procedimento de interrupção da gravidez previsto em lei após um estupro — no Hospital Pérola Byington, em São Paulo, gera revolta e, ao mesmo tempo, um chamado de vigília.

Vigília porque é possível observar a ascensão dos conservadorismos religiosos e, com ela, a ofensiva aos direitos das meninas e mulheres, mas, em especial, aos direitos sexuais e reprodutivos — que incluem a garantia de acesso pleno a métodos contraceptivos e à interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. Enquanto mulheres, em especial negras e pobres, continuam sendo as principais vítimas de violência sexual e precisam de ajuda, esses grupos trabalham de forma integrada para manter o debate raso e difuso.

Neste mesmo hospital, que é referência no atendimento integrado à saúde da mulher, em 2019, grupos religiosos contra o aborto montaram uma tenda em frente à unidade. Eles carregavam consigo reproduções de fetos, bebês, terços e cruzes, e faziam uma quarentena de orações exatamente contra um serviço prestado no hospital: a interrupção de gestação.

Em resposta, na mesma época, ativistas pró-aborto legal também montaram uma tenda no mesmo local. Nossa organização, Católicas Pelo Direito de Decidir, se somou a esta contra ofensiva se colocando mais uma vez "na luta pelo Estado laico e contra os fundamentalismos". É assim que nos colocamos enquanto feministas e mulheres de fé.

Quando grupos religiosos conservadores e direitos reprodutivos se cruzam, o que temos visto é uma interferência desumana que reproduz violências, obstaculiza direitos e atrapalha o trabalho de profissionais no sistema de saúde. É comum a estes grupos rejeitar a pluralidade e negar a influência aprisionante, violenta e patriarcal em sua narrativa que evoca a religiosidade.

Importante lembrar que estes grupos têm atuado de forma contundente na esfera política - e pensar ações futuras e conjuntas com as mais diferentes expressões de fé é preciso. Em maio, inclusive, lançamos a campanha "Eu, você e o Estado Laico: O que tem a ver?" com a intenção de provocar discussões e lançar novos olhares para o cenário atual, tendo sempre em vista a relação entre religião, Estado e a garantia dos direitos das meninas e mulheres.

As orações são, na verdade, constrangimentos públicos baseados em discursos sacrossantos que acometem as vítimas a mais uma violência psicológica. Não é difícil imaginar os sentimentos que a percorrem neste momento: está com medo, assustada e precisa de acolhimento e cuidado.

Repetimos reiteradamente que quem recorre ao serviço de aborto legal está em pelos menos uma das situações previstas em lei: tem sua vida em risco devido a gestação, passou por uma violência sexual ou o feto é anencéfalo, portanto sem chance de vida fora do útero.

Como bem pontuou a antropóloga Débora Diniz em suas redes sociais, é sabido que a assistência religiosa em hospitais está na Constituição visando a garantia de conforto espiritual em momentos de sofrimento. Há espaço, inclusive físico, para a manifestação da fé cristã, diga-se de passagem. O que é diferente de fazer orações na porta de hospitais, constranger quem busca o serviço, chamar médicos de "assassinos" ou distribuir um livro que, neste caso, é símbolo de julgamento e condenação.

Aqui não cabem julgamentos. Tomar a decisão de interromper a gravidez pode ser uma atitude, inclusive, de fé. E não apesar da fé. Interferências religiosas como as que temos visto - envolvendo símbolos de julgamento e intimidação - estão longe de ser um ato de compreensão e compaixão, longe também estão de ser um ato de fé.

*Católicas Pelo Direito de Decidir é uma organização feminista que defende o acesso ao aborto legal, seguro e gratuito desde 1993 no Brasil. Segundo a entidade, em uma disputa de narrativa, se colocam como mulheres religiosas que trabalham por justiça social, mudanças dos padrões culturais e religiosos que limitam a autonomia e a liberdade das mulheres, pautadas pela teologia feminista.