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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dia do Orgulho Bi: nós, bissexuais, somos apagados por héteros e gays

23 de setembro é Dia da Visibilidade Bissexual - Reprodução / Internet
23 de setembro é Dia da Visibilidade Bissexual Imagem: Reprodução / Internet
Mariana Serrano

Colaboração para Universa

23/09/2021 04h00

Hoje, dia 23 de setembro, o Orgulho Bissexual é mundialmente celebrado. Nós, que nos identificamos assim, lutamos, entre outras coisas, para quebrar os preconceitos de uma sociedade baseada na monossexualidade - ideia que impõe às pessoas "se relacionem sexual e/ou romanticamente exclusivamente com pessoas de um determinado gênero". As pessoas não-monossexuais, como, por exemplo, as pessoas bissexuais, são constantemente subjugadas e ignoradas, inclusive por parte considerável dos movimentos LGBTIA+.

Diz-se por aí que as pessoas bissexuais não precisam sair do armário, a não ser quando se relacionem com pessoas do mesmo gênero. Diz-se que poderíamos existir no mundo sem precisar falar de nossa sexualidade, beneficiando-nos da "leitura heterossexual" que a sociedade faz de nós. Existe, inclusive, a impressão de que essa leitura seria um privilégio, por sermos capazes de nos esconder em plena luz do dia. Eu digo que é bem o contrário.

Primeiro porque não existe aceitação social da bissexualidade, logo, para gozarmos desse suposto privilégio teríamos que mentir sobre quem somos e isso as pessoas homossexuais também podem fazer, é só dizer que são heterossexuais. É absurdo, né? Pois é! Concluímos que não há privilégio algum em ter que mentir sobre si para obter aceitação.

Em segundo lugar, o armário bissexual é muito peculiar. Enquanto homossexuais narram a saída do armário como um evento grande e definidor de suas vidas, nós bissexuais temos que sair do armário o tempo todo, é exaustivo. Não temos uma narrativa linear que nos permite resolver isso de uma vez por todas.

A monossexualidade quase nunca é referida como um padrão social, pois a maior violência por ela produzida é justamente o apagamento identitário. A sociedade não acolhe a multiplicidade de afetos e desejos sexuais que podem existir dentro de uma pessoa só, mas, ao contrário, enxerga a orientação sexual das pessoas a partir do dado "com quem aquela pessoa se relaciona".

Para simplificar, proponho imaginar uma cena cotidiana e a forma como provavelmente ela é lida por você. Quando olhamos para um casal passeando de mãos dadas na rua, pensamos que, se forem dois homens, eles são gays; se forem duas mulheres, elas são lésbicas; e, se forem um homem e uma mulher, são pessoas heterossexuais. Mas você já parou para pensar que todas as pessoas mencionadas no exemplo acima podem ser bissexuais, assexuais, pansexuais, por exemplo?

Para o observador desatento, isso sequer passa pela cabeça já que a nossa sociedade simplesmente presume que, se são duas mulheres, são lésbicas e pronto. A possibilidade de que sejam bissexuais não é lembrada, sequer existe. Porém, pensar assim implica em tirar dessas mulheres sua capacidade de autodeterminação, colocando em um relacionamento (ou num gesto, andar de mãos dadas) a definição de quem elas são. Isso não parece certo! Para saber a orientação sexual de uma pessoa, não tem segredo, tem que perguntar para ela.

As orientações não-monossexuais existem independentemente da aparência das relações e de como a sociedade as interpreta. Porém, assumir isso enquanto sociedade, portanto, estruturalmente, seria ameaçar a estabilidade dos conceitos de heterossexualidade e de homossexualidade.

Isso porque, a partir do momento que a sociedade admite a existência de bissexuais e pansexuais, é como se colocasse em xeque todas as orientações monossexuais. Afinal de contas, se namorar mulheres não comprova que João é heterossexual, o que comprova? E não tem nada que assuste mais as pessoas heterossexuais do que serem confundidas com pessoas não heterossexuais.

Já as pessoas homossexuais conquistaram seus direitos civis por meio de muitas lutas, dentre elas a de que não escolheram ser como são, mas nasceram assim.

A aparente volatilidade da bissexualidade é assustadora. Se ninguém escolhe ser homossexual, como que essas pessoas bissexuais ficam por aí transitando entre os mundos? A ameaça está justamente na estabilidade das conquistas, já que elas vieram a partir de uma equiparação a direitos civis de pessoas heterossexuais, como casamento, o reconhecimento da maternidade e da paternidade, a herança, o registro de filhos etc.

A solução que a monossexualidade encontrou para não ser duvidada é apagar da sociedade a existência não-monossexual - e, assim, a necessidade de afirmar com veemência que homem que gosta de homem é gay, mulher que gosta de mulher é lésbica (sapatona convicta!) e homem que gosta de mulher é hetero.

E, se você for bissexual, vai ter sua bissexualidade questionada o tempo todo, com base nessas premissas. Uma das estratégias mais comuns para nos apagar é associar a bissexualidade à promiscuidade. É classificar a bissexualidade como aquilo que está na doença, no fetiche, na hiperssexualização.

Nesse caso, as pessoas bissexuais são compartimentalizadas de forma equivocada, mas que costuma seguir as seguintes premissas:
- pessoas bissexuais são promíscuas e isso não tem espaço nos ambientes heterossexuais;
- pessoas bissexuais são vetores infecções sexualmente transmissíveis, responsáveis por transportar essas doenças entre os heterossexuais e a comunidade LGBTIA+;
- as mulheres bissexuais, na realidade, são heterossexuais que se relacionam com mulheres apenas para satisfazer os fetiches de homens heterossexuais - o que as torna traidoras do movimento LGBTIA+;
- os homens bissexuais, na realidade, são homossexuais que ainda ficam com mulheres só de brincadeirinha, porque não tiveram coragem de sair do armário - o famoso caso do "Fulano é bi? Só se for BI de Bicha";

Em todos os exemplos, não importa o quanto a pessoa repita que ela é bissexual, isso não será validado. Sua capacidade de falar por si é sempre questionada, dando lugar a algum preconceito que já existe.

A monossexualidade cria um ideal de bissexualidade perfeita, a pessoa que é "bissexual de verdade" e, sempre que possível, inventa alguma regra para que nunca sejamos: "mas você fica mais com homens ou com mulheres? Tem que ter um que você gosta mais!"; "ela fica com mulher mas só namora homem, na verdade é heterossexual".

Ao dizer que bissexuais são "Bi de Bicha" apaga-se bissexualidade masculina. É a ausência de aceitação da bissexualidade enquanto orientação sexual válida, que é resolvida com a tentativa de encaixar em outra orientação, no caso, a homossexual. A existência de casos isolados de homens gays que passaram pela bissexualidade como forma de descoberta pessoal não faz com que isso seja uma regra.

O que não dá mais é para homens não-monossexuais saírem do armário e terem sua declaração deslegitimada, como aconteceu recentemente com Reinaldo Gianecchini. Homens não-monossexuais existem e eles não têm que provar sua sexualidade. Ninguém duvida da homossexualidade de um homem que se diga gay. Por que duvidar de bissexuais ou de pansexuais? Por acaso eles não sabem de si?

Em razão da estrutura monossexual de sociedade, precisamos nos assumir bissexuais a cada novo relacionamento, ficada, flerte ou crush. Precisamos diariamente lembrar que existimos, porque, pior do que invisíveis, somos ativamente apagadas pela sociedade.

Quando pessoas declaradamente bissexuais falecem, são imediatamente atreladas à homo ou heterossexualidade. São exemplos: Cássia Eller, Sergio Mambert, Marielle Franco, Cazuza, Renato Russo, Freddie Mercury.

Mesmo vivas, ainda assim sofremos questionamentos sobre a nossa sexualidade. É o que aconteceu com Lucas Penteado no BBB21, com Reinaldo Gianecchini, com Luiza Sonza, Anitta, Ludmila, Ana Carolina e comigo, Mariana Serrano.

Por isso, em 23 de setembro, pedimos por visibilidade!

* Mariana Serrano, sócia de Claro & Serrano Advocacia e autora do livro "Vidas LGBTQIA+: reflexões para não sermos idiotas". Coordenadora do Núcleo de Diversidade e Inclusão da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB. Membra da Frente Bissexual Brasileira.