Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Casamento às Cegas': o amor pode ser cego, mas mulheres estão atentas
Você provavelmente já ouviu falar do reality show do momento, "Casamento às cegas". Dez mulheres e dez homens conversam por meio de cabines, sem saberem como são fisicamente; se o papo for bom, alguém (em geral o homem) propõe casamento. Dali em diante o casal vive alguns momentos juntos até chegar o dia do altar. E é normalmente onde os problemas começam.
Muito tem sido dito sobre o programa de grande sucesso, e algumas questões me interessam porque produtos midiáticos tendem a representar muito do que pensa a sociedade. Nos perguntemos: por que um reality de casamento faz sucesso? O desejo de se casar é comum a todas/os no programa, mas homens e mulheres não enxergam casamento da mesma forma. Qual é a razão?
Quando pensamos em uma perspectiva histórica, o casamento é o destino natural das mulheres, seguido pela maternidade. Ainda que homens se casem, as razões sociais e culturais são diferentes. A historiadora Michelle Perrot, em seu livro "Minha história das mulheres", observa que casamento é o ápice do estado de ser mulher, a condição normal e desejada. Se este é o destino natural, a mulher que não se casa tem uma única justificativa: não foi escolhida, não houve um homem que a desejasse. O celibato, observa a autora, é a situação da mulher desprezada.
Neste sentido, ainda que os homens estejam igualmente buscando uma parceira no programa, as motivações são diferentes —consequentemente, a tolerância também.
Vemos os homens reproduzirem comportamentos machistas em todos os níveis de forma absolutamente naturalizada entre eles, com apoio do grupo —não à toa seu lema é 'better together', melhores juntos, em português.
Os exemplos são inúmeros e não quero dar spoiler, mas tem misoginia para todos os gostos: tem o homem que se incomoda com a mulher que quer provar o vinho (ela questiona o garçom: por que o homem é servido primeiro? E ele não gosta), o que diz que a mulher deve ser um pouco mãe do próprio marido (mas ignora a filha da parceira quando passam o dia juntos), o que impõe que a parceira pare de fumar, desqualifica seu trabalho e diz que não quer uma mulher que tenha tido muitos parceiros.
Tem também o que objetifica totalmente a parceira, só conversa sobre sexo, diz que não vai se mudar do apartamento recém-reformado que divide com um amigo e faz comentários íntimos com os colegas, provavelmente de cunho sexual, expondo a parceira. E vêm mais episódios por aí, o que significa que sempre pode piorar.
Sempre que digo coisas assim escuto que "hoje é diferente e as mulheres podem escolher". Em tese há, claro, a possibilidade de não se casar, de fazer sexo antes do casamento, de não ser mãe. Mas a raiz da opressão está lá, basta ver os exemplos citados acima. A história das mulheres nos ensina a tolerarmos para alcançar o "objetivo maior". O modelo da feminilidade, socialmente construído, estabelece que o lugar da mulher é o de esposa e mãe, e que o casamento é o prêmio para a recompensa de seus esforços.
Adoraria dizer que o mundo está mudando, mas não é o caso. Mas tem, sim, algo de diferente neste programa: mulheres que, ao que parece, estão subvertendo a lógica da passividade, que Simone de Beauvoir mostrou que era a condição feminina, e mesmo desejosas do casamento, questionam se aquilo que os homens lhes oferecem é suficiente.
O amor pode ser cego. Mas as mulheres estão de olhos cada vez mais abertos.
*Maria Carolina Medeiros é professora, doutoranda em Comunicação (PUC-Rio) e pesquisa socialização feminina.
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