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OPINIÃO

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Lei Mari Ferrer é ferramenta na luta por respeito ao direito de denunciar

Reprodução/ Instagram
Imagem: Reprodução/ Instagram

Colaboração para o UOL

24/11/2021 04h00

Foi sancionada ontem a Lei 14.245/2021, que fica conhecida como Lei Mari Ferrer, por ter sido proposta pela deputada Lídice da Mata (PSB) em resposta ao caso da mulher que acusou o empresário André Aranha de estupro e se tornou vítima de um processo judicial escancaradamente machista.

O caso tomou o debate público após imagens da audiência divulgadas mostrarem a vítima ser humilhada pela defesa do acusado, com anuência do juiz responsável pela condução do processo, que nada fez para impedir que os advogados de Aranha se utilizassem de um expediente tão comum quanto problemático em casos de violência sexual: atacar a dignidade da vítima e transformá-la em ré de um julgamento moral sobre sua conduta.

O que aconteceu com Mariana Ferrer não foi um caso isolado, um "erro de condução". Foi a expressão pública de uma realidade cotidiana de um sistema judiciário que não foi pensado e nem tem ferramentas para tratar das especificidades da violência decorrente de gênero, e que reproduz formas de silenciamento da mulher vítima de violência sexual.

O que parece diferente, nesse caso, é justamente a resposta que propôs o movimento de mulheres e o legislativo. Na maior parte das vezes, a consequência da superexposição de casos penais na mídia toma uma veia punitivista, com a demanda por penas mais duras para as condutas do acusado. Os problemas desse tipo de punitivismo penal, principalmente para os casos de violência de gênero, é justamente individualizar no acusado uma conduta, deixando de lado todo o debate estrutural que devemos fazer sobre a cultura de uma sociedade e de um Estado que não sabe lidar com a violência contra as mulheres.

Neste caso, apesar da revolta com a absolvição do acusado, foi o sistema judiciário que sentou no "banco dos réus" do debate público. E ao contrário de criar mais punição, a Lei Mari Ferrer toca em um gargalo mais profundo: como são tratadas as mulheres denunciantes de crimes sexuais.

A lei visa garantir a integridade física e psicológica da vítima, além de proibir a manifestação sobre fatos alheios ao que se está discutindo nos autos e a utilização de informações que ofendam a dignidade da vítima. Ou seja, proíbe a utilização do expediente machista de defesa que coloca a moral da vítima em julgamento, vetando perguntas sobre sua conduta sexual, sobre seus hábitos, e a utilização de ofensas e linguagem imprópria com intuito de desestabilizar a vítima durante o processo.

Ao proteger a vítima desde o início do processo, a lei procura reequilibrar um gargalo profundo do sistema penal, impedindo que a vítima seja transformada em ré no próprio processo. Ademais, ao responsabilizar todas as partes do processo, cria regras civilizatórias para a condução de casos de violência sexual que devem ser cumpridas não só pelas partes, como pelos(as) advogados(as) e julgadores(as), implicando todos os sujeitos do processo em uma necessidade de repensar como tratamos e julgamos as mulheres.

É certo que não basta uma lei existir para que os problemas que ela procura solucionar desapareçam. O machismo do sistema judiciário é o reflexo de uma sociedade estruturalmente violenta contra as mulheres, marcada pela cultura do estupro e pelo silenciamento de temas ligados à liberdade sexual feminina. Uma lei não é capaz de transformar essa violência tão enraizada do dia para a noite.

Contudo, a aprovação da Lei Mari Ferrer demonstra um avanço no debate público e uma resposta coletiva, ainda que tardia, à violência sofrida por Mariana no âmbito do judiciário. É preciso alguma maturidade do debate sobre violência de gênero para que se consiga apontar quem são os agressores: não apenas o acusado diretamente, mas todas as instituições que permitem que as violências aconteçam, que impede que as mulheres falem e que punem sua manifestação pública sobre as "violências do privado".

Com a Lei 14.245/2021, as mulheres vítimas de violência têm um reconhecimento legal do que sofrem no judiciário, e mais um instrumento para lutar por respeito ao seu direito de denunciar.

Tainã Góis, doutoranda e Mestra em Direito pela USP, Conselheira de Política Para Mulheres de São Paulo e Cofundadora da Rede Feminista de Juristas