Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'No dia pelo fim da violência contra mulheres: sem elas, não há democracia'
A primeira mulher eleita a presidir o Chile, a médica Michelle Bachelet, bradou uma das frases mais representativas sobre a pauta da igualdade de gênero e política: "Quando uma mulher entra na política, muda a mulher. Quando muitas entram, mudam a política".
De fato, Michelle quis mostrar as diferenças de gênero e seus impactos no âmbito individual e coletivo relacionados à participação política feminina, mas antes de tudo provocar reflexões que questionam a própria política e a democracia quando alheias a essa realidade.
No Brasil, o debate tem tomado a agenda legislativa há 89 anos. A reivindicação do direito ao sufrágio foi uma das pautas mais emblemáticas da luta feminista, considerada o marco da primeira onda que teve nos movimentos de mulheres a razão da sua conquista em 1932. Antes disso, as mulheres sequer participavam da vida política do país.
Ainda assim, como voto voluntário e norma dependente de harmonização com as regras do Código Civil de 1916, a decisão sobre o direito à participação feminina ainda incumbia aos maridos, os chefes da família, que avaliavam e autorizavam as esposas a votar e a trabalhar.
Não à toa, atribui-se a 1965, que instituiu o alistamento e o voto obrigatórios para brasileiros de um e outro sexo no Código Eleitoral, o momento histórico que, de fato, garantiu a participação das mulheres na política brasileira, ao colocar a legislação eleitoral em consonância com a lei civil, que, através da Lei 4.121/1962, alterou a situação jurídica da mulher casada.
Conquistas ano a ano
Com a abertura do voto da pessoa analfabeta em 1985, outras frentes se abriram para ampliar a ideia da concretização do voto universal, mas ainda longe, na prática, de um cenário democrático, apesar do advento da Constituição Federal de 1988, que previu a garantia de igualdade entre homens e mulheres, da Lei dos Partidos Políticos, de 1995, e da Lei das Eleições, de 1997.
A minirreforma eleitoral de 2009 tentou buscar alternativas para a redução da desigualdade representativa de gênero, introduzindo a política das cotas de gênero. Na ocasião, de 2007 a 2011, eram 47 deputadas e 10 senadoras; onze anos depois da minirreforma, 77 deputadas e 12 senadoras, o que representa 15,01% dos deputados federais e, 14,8% no Senado. Em 20 estados, nenhuma mulher foi eleita e, em três deles, nem houve candidatas.
Baixa representatividade
Em pleno 2021, dados divulgados pelo IBGE, em ranking de 190 países, indicam que o Brasil está classificado na 152ª posição em relação ao percentual proporcional entre homens e mulheres na ocupação das cadeiras parlamentares, ficando atrás de países como Somália e Afeganistão. Fraudes, como a escolha de mulheres pelo partido apenas para "cumprir a cota" sem qualquer garantia de financiamento à sua candidatura, têm sido denunciadas, mostrando que as candidaturas fictícias vieram como uma forma velada e naturalizada de reação à ocupação de espaço pelas mulheres.
Para além da falta ou da baixa representatividade, questiona-se também a dignidade da participação das mulheres no espaço da política. Só em 2016, depois de 55 anos, o plenário do Senado Federal passou a ter um banheiro feminino - que, por lamentável coincidência, foi o mesmo ano em que o plenário do Supremo Tribunal Federal também passou a contar com um, dezesseis anos depois da posse da primeira-ministra da história da Corte.
Neste ano sobreveio a Lei n. 14.192/21, que, além de garantir direitos de participação política da mulher, veda a discriminação e a desigualdade de tratamento em virtude de sexo ou de raça no acesso às instâncias de representação política e no exercício de funções públicas.
Ao conceituar o que é violência política contra a mulher, a lei deixa claro que condutas caracterizadas por assédio sexual, interrupção de fala, desqualificação intelectual, objetificação do corpo feminino, além de tantos outros, e que reiteradamente são denunciadas como práticas constantes contra as mulheres na arena pública, são inaceitáveis.
São consideradas violência de ordem simbólica as condutas que, em razão da sua sutileza e da aquiescência tácita do meio em que operam, camuflam-se sem grandes dificuldades como banais e inofensivas, de modo que não é errado supor que sejam mais temerárias que a violência física[4].
A tentativa covarde de suprimir a fala de uma colega em uma reunião ou em uma sessão oficial, a sabotagem indireta da sua relevância pelo seu isolamento no processo decisório, a sua redução a um papel estritamente coadjuvante são ações não estranhas à experiência feminina em ambientes políticos e não podem ser negadas como violência.
Não cabe o achincalhamento e o apequenamento da participação das mulheres na política. Qualquer conduta que tenha por finalidade impedir os direitos políticos da mulher, ou qualquer outra que tenha venha a promover distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo, configura violência não só as mulheres, mas à própria democracia.
Assédio político como crime
Mais uma vez as mulheres precisaram se socorrer do Direito Penal para reafirmar seus direitos. O assédio político é agora definido como crime. Seja candidata ou detentora de mandato eletivo, aquele que assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaça, utilizar-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo, poderá ser processado e punido criminalmente.
Neste ano, o dia internacional pela eliminação da violência contra a mulher vem acompanhado deste emblemático instrumento. Em 89 anos de luta para a garantia do sufrágio feminino, a lenta e parcial participação das mulheres na política reflete uma reativa resistência masculina[5]. Este dia, criado para denunciar a violência contra as mulheres no mundo todo, também serve à reflexão de suas causas e a um chamado para a mudança.
*A autoria é dividida com Sandra Krieger Gonçalves, conselheira do Conselho Nacional do Ministério Público. Presidente da Comissão de Saúde do Conselho Nacional do Ministério Público. Advogada, Mestre e Doutora em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI
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