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OPINIÃO

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'O Golpista do Tinder': por que abusador escolhe mulheres com mesmo perfil?

Cena do documentário "O Golpista do Tinder" - Reprodução
Cena do documentário "O Golpista do Tinder" Imagem: Reprodução
Chris Menezes

Colaboração para Universa

10/02/2022 04h00

Sigo pensando sobre a história retratada no documentário "O Golpista do Tinder", que estreou recentemente na Netflix. O enredo tem situações e um desfecho tão absurdos que custamos a acreditar que se trata de um crime real.

Há uma gama de questões que poderíamos debater e problematizar, mas me aterei àquela que é foco do meu trabalho como especialista em relacionamentos abusivos: a dependência emocional, fruto da socialização feminina e do ideal de amor romântico — que leva mulheres a acreditarem que um relacionamento será sua maior, se não a única, fonte da felicidade e, às vezes, acabam sacrificando seu próprio bem-estar para manter o parceiro por perto.

Vale lembrar que, em casos como os retratados no documentário, a culpa nunca é da vítima. Aqui, vamos refletir o que as mulheres que são alvo dos golpistas têm em comum e qual a relação disso com o papel feminino imposto pela sociedade.

Em "O Golpista do Tinder", vemos mulheres vibrantes, bem-sucedidas e independentes financeiramente que foram brutalmente enganadas por um estelionatário. Ao contrário do que equivocadamente se pensa sobre vítimas potenciais, elas não são frágeis ou desprovidas de sagacidade.

Então, por que isso acontece? O que torna mulheres, de origens e contextos diversos, foco de golpistas e abusadores?

Em primeiro lugar, precisamos entender que, social e culturalmente, a mulher é condicionada a depender do outro. No geral, ela cresce para ser filha, irmã, esposa, mãe de alguém. Nesse contexto, não existe a ideia de autonomia afetiva e, pela ausência do preenchimento de si mesma, ela busca o preenchimento pelo outro, a fim de aliviar seu vazio emocional.

Dessa forma, quando uma relação amorosa se inicia, a dependência infantil reaparece e ela projeta no novo parceiro a certeza de que será cuidada, protegida, amada incondicionalmente e de que não ficará mais sozinha, vivendo o ideal romântico do "felizes para sempre".

A ideia de que um príncipe virá em sua salvação segue ainda muito sedutora. Mesmo emancipada e já tendo conquistado seu lugar no mercado de trabalho e no mundo, a mulher moderna ainda não se vê totalmente livre da ideação romântica de amor, o que a torna alvo de manipulações fantasiosas, em que ela é convencida de que encontrou o amor de sua vida em alguém que mal conheceu.

Mesmo considerando os diversos fatores que envolvem cada relação em particular, abusadores e golpistas identificam e sabem explorar com maestria os gatilhos e pontos fracos que alimentam em sua vítima o medo de perdê-los.

Assim, essa mulher é manipulada para aceitar os mais variados tipos de violência ou atitudes que colocam seu próprio bem-estar físico, emocional e até financeiro em risco.

A dependente emocional sente uma forte necessidade de cuidar, se doar e ajudar, como se isso fosse uma condição para sua existência. Dessa forma, ela tende a se sentir atraída por parceiros problemáticos ou que apresentem algum tipo de desequilíbrio emocional. Ao se ver diante de um pedido de ajuda por seu objeto de afeto, mesmo que seja algo racionalmente questionável, ela não hesitará em atender, buscando recursos fora de seu alcance, se preciso.

Cumprindo o papel de salvadora, ela espera não só ter seus esforços reconhecidos e valorizados, mas que todo seu sacrifício será retribuído em forma de amor incondicional. Em tempos de apps de relacionamento, como se defender desses predadores?

A dependência emocional é uma condição afetiva decorrente de pensamentos disfuncionais, portanto, mais que identificar sinais de perigo nos crushes e matches, é importante que a mulher se conscientize sobre seus padrões de comportamento para ter relacionamentos mais saudáveis. Dessa forma, ela poderá fortalecer a distinção entre ela e a outra pessoa e entender que a necessidade de ter um parceiro é uma cobrança social infundada.

Tendo essa consciência e com sua autonomia afetiva fortalecida, ela terá menos risco de entrar no ciclo abusivo, mesmo que se conecte a um predador em potencial.

* Ex-vítima de violência emocional, Chris Menezes é terapeuta especialista em relacionamentos abusivos e ajuda mulheres a se libertarem de relações destrutivas e a resgatarem sua autoconfiança