Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Melhem diz que assédios foram brincadeira. Por que essa desculpa é aceita?
Os desdobramentos das denúncias das atrizes da Globo contra Marcius Melhem expõem o roteiro de terror que vivem as mulheres que levam a público suas histórias de assédio sexual. As novas informações foram divulgadas na segunda-feira (14) pela revista piauí.
Quando Dani Calabresa denunciou as situações que viveu nas mãos de seu então chefe, superou o medo da retaliação, enfrentando inclusive processos por calúnia e difamação movidos contra ela por seu agressor. Não bastasse, durante o processo de investigação, em vez de se retratar pelo ocorrido, Melhem segue produzindo e reproduzindo comportamentos machistas e violentos contra mulheres.
No último depoimento, Melhem não negou as acusações de que teria feito propostas sexuais às atrizes, mandado mensagens constrangedoras ou insistido em falas de conotação sexual contra as atrizes.
O ex-chefe do humor da Globo diminuiu a importância dos fatos que o levaram a ser acusado: alegou que tais comportamentos não passavam de "brincadeira".
Frente ao óbvio incômodo das vítimas por suas falas e atos, fica a questão: ainda é aceitável, nos dias de hoje, dizer que atitudes denunciadas como assédio sexual e machismo são apenas "brincadeiras"?
Em uma tese bastante discutida, Heleieth Saffioti, uma das mais importantes sociólogas e feministas brasileiras, argumenta que a violência psicológica contra as mulheres, muitas vezes, pode ser até mais destrutiva para a vítima do que a agressão física.
Isso porque, enquanto a violência física é facilmente detectável, a violência psicológica muitas vezes acontece de forma escamoteada, escondidas atrás de falas aparentemente inocentes, brincadeiras, ou mesmo comportamentos ambíguos que colocam a vítima em um estado de confusão mental, o que dificulta o reconhecimento de que está vivendo uma situação de violência.
Parece que ainda é preciso dizer o óbvio, mesmo para aqueles cuja carreira é construída em torno da manipulação da linguagem e das ambiguidades: a violência contra a mulher é produzida e reproduzida na sociedade tanto no campo concreto quanto no campo simbólico.
A manutenção de uma sociedade patriarcal e da cultura do estupro não se dá apenas por comportamentos que chegam às vias de fato — sua perpetuação na sociedade é muito mais sutil e perigosa.
São as falas enviesadas, as pequenas 'brincadeiras', as frases feitas preconceituosas que mantém a ideologia de opressão da mulher e, pior, ensinam geração após geração os mecanismos de opressão de gênero.
O conceito de violência simbólica é usado justamente para se referir à ideologia que permeia a comunicação em sociedade e que faz parecer comum uma linguagem que perpetua a desigualdade de gênero. Aqui, vejam, não é apenas o conteúdo da fala em si que perpetua a violência — ainda que, por si só, já seja bastante violenta — mas justamente o clima de aceitação que se cria em torno de colocações que partem do pressuposto de que é natural a objetificação e a diminuição da condição de sujeito do sexo feminino.
Esse mecanismo, perpetrado muitas vezes por "brincadeiras" aparentemente inocentes, tem uma função social clara: a manutenção do machismo enquanto forma de organização da sociedade, uma estrutura de poder na qual a mulher é resumida a um objeto e, portanto, inferior ao sujeito masculino.
Aqui parece caber, mais uma vez, uma discussão importante sobre o que entendemos por liberdade de expressão, já que é comum a fala de que são as "chatas das feministas" que veem problema em tudo ao discordar de "brincadeiras" que os homens sempre fizeram. Essa concepção de liberdade de expressão ilimitada, contudo, não só está equivocada eticamente, como não encontra respaldo na própria legislação brasileira.
Nenhum direito em nossa constituição é ilimitado. Não podemos nos confundir. A liberdade de expressão que garante a Constituição foi um ganho social previsto justamente para garantir a troca de ideias e pensamentos de forma igualitária e democrática.
Falas que restringem a cidadania de determinados grupos sociais, que tendem a perpetrar a opressão contra minorias, e que promovem violência e assédio são, ao contrário do que possa parecer, as verdadeiras vilãs da liberdade de se comunicar — já que, na prática, tornam menos livres para se manifestar e para serem reconhecidos justamente aqueles e aquelas que não fazem parte dos grupos dominantes que sempre tiveram espaço para falar e ser ouvidos.
A noção da desigualdade entre aquele que faz a "brincadeira" e o alvo da piada é fundamental para que a gente consiga compreender que algumas falas partem de um lugar muito mais obscuro do que à primeira vista possa parecer.
Melhem se utilizou justamente da autorização da cultura do estupro e do machismo para impor um clima onde o assédio sexual era a tônica da comunicação entre os colegas de trabalho.
Além disso, se valendo de sua posição de chefe, é claro que era muito limitada a possibilidade de que as mulheres alvo de suas "brincadeiras" pudessem manifestar seu incomodo, sob pena de "não entrarem no jogo da cultura da empresa".
Se é que se pode dizer que algo de bom pode sair de uma situação de violência, a coragem das denunciantes nos dá a oportunidade de discutir publicamente as agressões, infelizmente ainda muito comuns, contra as mulheres que movem processos judiciais por assédio sexual.
É preciso desnaturalizar o comportamento agressor do machismo e, em seu lugar, naturalizar que não é mais possível se utilizar da máscara da "brincadeira" para perpetuar comportamentos que tem como única função a manutenção de uma sociedade desigual contra as mulheres.
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