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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Minha amiga Kathlen Romeu foi morta há 1 ano, e ainda estamos sem respostas

Kathlen Romeu foi morta em 2021, aos 24 anos e com três meses de gestação, durante operação policial no RJ - Reprodução/Arquivo Pessoal
Kathlen Romeu foi morta em 2021, aos 24 anos e com três meses de gestação, durante operação policial no RJ Imagem: Reprodução/Arquivo Pessoal
Mariana de Paula

Colaboração para o UOL

08/06/2022 11h03

O ano era 2019. Falando assim, parece até pouco —faz só três anos que a gente se encontrou pela primeira vez? Gosto de contar como eu te conheci. É inevitável recordar esse dia e não aparecer um sorrisinho de canto.

Estávamos em um evento na quadra da Portela em Madureira, aqui no Rio de Janeiro, e você chegou com seu bonde, todas estilosas demais. Um grupo lindo de mulheres negras, de presença forte, coloridas, como se tivessem saído de um editorial de moda. Lembro que olhei e pensei: "Lá vêm elas, acham que vão desfilar onde? Essas meninas devem ser muito chatas". Não demorou muito e você mostrou a que veio.

Você sempre foi muito linda por fora, Kathlen, isso é fato, mas só quem teve o prazer de passar alguns minutos dessa vida com você sabe que sua beleza transcendia qualquer traço físico. Tudo de mais bondoso, amoroso, simpático e acolhedor que você tinha por dentro refletia em um simples "oi, tudo bem?" seu. Era impossível não ceder à força da sua presença. Foi desse jeito, lá em Madureira, que nossa amizade começou.

Tem um ano que eu falo muito de você para os outros, assim como estou fazendo agora. Querem saber como você era. Digo sempre o mesmo: linda, alegre, feliz. No dicionário, as definições de contente são estas: 1) repleto de felicidade ou alegria; alegre e feliz; 2) que conseguiu alcançar todos os seus objetivos, metas, desejos etc; satisfeito. Kath, você era contente demais e traduzia esse adjetivo na sua existência.

Mariana de Paula e Kathlen Romeu - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
Mariana de Paula e Kathlen Romeu
Imagem: Acervo Pessoal

Você se foi muito jovem, com 24 anos, mas quem conviveu contigo sabe como você parecia ter vindo de um mundo encantado (até sua voz era de desenho). Não que sua vida fosse perfeita, mas será que para você a sensação não era essa mesmo? Você era tão grata pela sua vida, pela sua família, pelos seus amigos, pelos seus desafios e pelas suas realizações que contagiava todo mundo. Estar com você era sinônimo de leveza, era sentir aquela brisa de "a vida é boa".

Kath, eu continuo sentindo essa sua brisa, onde quer que você esteja. A vida é boa, mas fico me perguntando: será que ela é justa? Você, que não tinha nada a ver... Eu me questiono: por quê? Por que era negra? Por que era cria de favela? Por que estava com um penteado nagô? Por que estava visitando o lugar em que cresceu, amadureceu e se formou? Porque, seguindo a lógica falha e podre da meritocracia branca, estudou, batalhou, se formou em design de interiores, trabalhou, juntou seu dinheiro, casou, saiu da favela, engravidou, foi atrás do seu cantinho e estava construindo a sua família. O que foi que deu errado?

Seu mérito foi ter sua vida e a vida do seu bebê interrompidas pelo Estado da forma mais cruel possível? Seu mérito é ter o Ministério Público do Rio de Janeiro lento em resolver o seu caso, mesmo com laudos do próprio órgão e da Polícia Civil indicando que não havia confronto no Complexo do Lins naquele dia 8 de junho de 2021 ensolarado, desmentindo a versão de agentes da Polícia Militar do Rio de Janeiro que utilizaram dessa desculpa vazia para justificar a sua morte?

Hoje faz um ano que você foi assassinada. Faz um ano que o Estado dessa tal cidade maravilhosa desestruturou a vida de muitas comunidades suas: família, amigos e clientes da Farm, amigos da Estácio de Sá, amigos da Comunidade Black, amigos do Complexo do Lins, amigos da vida. Aliás, é o que o Estado mais tem feito nesse último ano: dizimado a vida da população negra, nos impedindo de qualquer perspectiva de futuro, minando qualquer chance de a gente descobrir, errar, acertar, tentar de novo, testar as oportunidades; minando as chances de a gente simplesmente ser.

O Estado destruiu sua chance de ser mãe, da sua mãe de ser avó, da sua avó de ser bisavó; destruiu sua chance de ser o que você quisesse ser: designer, modelo, blogueira, produtora. Quantas chances você tinha, quantas possibilidades te foram tiradas, quantos traumas surgiram depois que você morreu em função dessa política de segurança pública que só protege a quem interessa e que mata cada vez mais jovens negros?

Faz um ano que nós, seus amigos e familiares, exigimos respostas, exigimos justiça, exigimos a acusação e julgamento de homicídio para os policiais que atiraram em você, exigimos uma retificação oficial da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro sobre seu caso, exigimos nosso direito ao luto e à memória em paz.

Tem muita dor na sua partida, mas sabemos que nossa história não acaba aqui. Mantemos vivo seu legado de coragem, luta e amor. Estamos cuidando uns dos outros, como você cuidava da gente. Você continua transmitindo tudo o que sempre transmitiu. Aquela gratidão que você tinha pela vida, a gente sente por ter tido a chance de viver no mesmo plano que você, por ter sido para muitos de nós verdadeira morada. Kathlen Romeu é presente, se faz presente. Kathlen Romeu vive.