Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Intimidade': a pornografia de vingança como controle do corpo feminino
Estreou recentemente na Netflix a série espanhola "Intimidade". A trama aborda duas histórias que se entrecruzam, a de Malen, uma política bem-sucedida e candidata à prefeitura de Bilbao, e, a de Ane, uma jovem operária da mesma cidade. Na série, ambas veem suas vidas virarem de cabeça para baixo em segundos, após terem vídeos íntimos seus expostos publicamente.
Malen, que sempre carregou consigo a imagem de política honesta e competente, num piscar de olhos passa a ser execrada por seus colegas de partido, por seu pai, pela população de sua cidade, e se vê numa luta árdua para manter-se no cargo. E Ane, que fazia seu trabalho sem chamar atenção e estava construindo uma nova vida ao lado de seu companheiro, passou a ser alvo de investidas agressivas dos seus colegas de trabalho, se sentindo envergonhada e culpada ela não consegue encontrar meios para lidar com a situação.
A série fala de uma realidade bastante atual, que é esta onde o limite entre o público e o privado se esvai entre smartphones e redes sociais, mostrando o desamparo que há no mundo digital neste aspecto. Mas, para além disso, ela mostra como esta realidade é muito mais perversa no que diz respeito às mulheres.
A começar pelo termo "pornografia de vingança", cunhado para retratar situações em que o criminoso, geralmente alguém até então de confiança, expõe publicamente imagens e vídeos íntimos da vítima com o intuito de prejudicar a sua imagem. Na imensa maioria dos casos, essas situações envolvem homens heterossexuais entre os que expõem esse tipo de material e as mulheres entre as que são expostas.
O curioso é que, apesar de em muitos casos estes homens também aparecerem nos vídeos e fotos expostas, isso não é um problema para eles, pelo contrário, muitos consideram até positivo, um reforço na imagem de virilidade que querem construir para si.
Para ilustrar o que estamos falando aqui, vejamos algumas situações reais em que mulheres e homens tiveram detalhes da sua intimidade vazados e como isso repercutiu de forma diferente entre eles: este ano viralizou uma notícia envolvendo a relação sexual entre um morador de rua e uma mulher diagnosticada com transtorno de personalidade bipolar, a mulher foi ridicularizada e agredida de todas as formas nas redes sociais, enquanto o homem virou um pop star, com direito até a convite para se candidatar a cargo político.
Outro caso recentemente lembrado foi o da atriz Pamela Anderson com o músico Tommy Lee, há muitos anos vazou um vídeo de conteúdo sexual envolvendo os dois, desde aquela época Pamela segue com sua carreira sendo estigmatizada pela mídia enquanto Tommy é celebrado por muitos homens, até hoje, pelo mesmo vídeo.
Apesar dos casos acima não terem sido motivados por uma vingança propriamente dita, eles servem para mostrar que, apesar de homens e mulheres fazerem sexo desde sempre, o corpo feminino nunca foi livre como o dos homens para explorar e exercer a sua sexualidade. E, isto acontece porque neste modelo atual de sociedade onde estamos inseridas nossos corpos existem mais para servir de objeto para o desejo masculino do que de instrumento do nosso próprio desejo. E o recado é claro: se ousarmos subverter esta ordem há um preço a pagar e ele costuma ser alto.
Esta vigilância, controle e punição do desejo e da sexualidade feminina não é por acaso, é uma das inúmeras formas que o machismo encontrou de exercer poder e fazer com que as mulheres sigam pertencendo ao domínio masculino e atendendo às suas regras impostas.
Esta é uma sociedade que, por um lado explora ao extremo o corpo feminino como objeto sexual, na mídia, nas redes sociais, pela indústria pornográfica, e que, na mesma medida, trata a sexualidade da mulher como algo vergonhoso e passível de punição. O que acontece é que nessa dicotomia "ou santa ou pecadora" o que impera é a mesma estratégia, a de não nos permitir que sejamos verdadeiramente livres para fazermos as nossas próprias escolhas, não só no campo da sexualidade, mas em todos os aspectos da nossa vida.
E, isso está muito bem retratado em "Intimidade", quando estas duas mulheres ousaram, cada uma à sua maneira, quebrar essa lógica que tenta reduzir a mulher a uma condição de subalternidade, quando Ane ousa terminar um relacionamento abusivo e Malen ousa querer ser prefeita da sua cidade, a punição não demorou a vir para tentar levá-las de volta ao lugar de onde querem que nunca saiam, esse lugar da mulher objeto, passiva, ausente de desejos e vontades próprias, que nasceu apenas para cuidar dos outros e nunca de si mesma, o lugar da mulher domesticada.
Mas, o que não esperavam é que a resistência finalmente viria. Tanto na série quanto na vida real a resistência está acontecendo e, ainda que tenhamos muitos obstáculos a serem vencidos, não aceitaremos nada menos do que a liberdade de sermos quem quisermos ser.
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