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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Há quase uma década, Brasil perdia a amarelinha para o autoritarismo

Com faixa que diz "Art. 142 Já", homem pede intervenção militar usando a camisa da seleção brasileira de futebol - Amanda Perobelli/Reuters
Com faixa que diz 'Art. 142 Já', homem pede intervenção militar usando a camisa da seleção brasileira de futebol Imagem: Amanda Perobelli/Reuters

Rosana Pinheiro-Machado

Colaboração para Universa

24/11/2022 04h00

É muito difícil dissociar as duas coisas que acontecem quando as pessoas usam a camisa verde e amarela: manifestações autoritárias e jogos da seleção brasileira. Claro, isso é apenas válido para todos aqueles que estão revoltados e traumatizados com tudo o que ocorreu no Brasil desde as primeiras marchas pelo impeachment em 2014. Naquele mesmo ano, torcedores brasileiros mandavam a primeira presidenta mulher eleita "tomar no cu" na abertura da Copa do Mundo, na Arena Corinthians, em São Paulo.

Já faz quase uma década que o símbolo da paixão nacional se tornou o símbolo de autoritarismo. Muitos brasileiros, amantes da Copa do Mundo e da seleção, sentem algum desconforto e mal-estar durante o Mundial. Recentemente, li um depoimento singelo de uma pessoa que assistiu a um vídeo de uma brincadeira de torcedores brasileiros contra argentinos e teve sentimentos ambíguos entre achar graça e pensar que aquelas pessoas no Qatar podiam ser bolsonaristas. Tem um gosto amargo, algo estranho no ar.

Para muitos, a sensação é de que não é mais a mesma coisa, especialmente após o papel central de Neymar na campanha de Jair Bolsonaro (PL). Isso se junta a uma onda de fanáticos insanos que, há semanas, fazem vigília em frente aos quartéis pedindo intervenção militar, divina e extraterrestre.

A bem da verdade é que o sequestro da camisa da seleção é um processo que se consolida ao longo dos anos e que só fica pior conforme representa o impensável, o que gostaríamos de apagar de nosso passado e presente autoritário: do saudosismo da ditadura militar às mortes por negligência na pandemia.

Não será de um dia para o outro que olharemos para pessoas com a camisa verde e amarela e pensaremos que são todos torcedores da seleção. Muitos de nós, quando nos deparamos com grupos com as cores do Brasil, sentimos não apenas repulsa, mas também medo. É um alerta de ameaça de pessoas que, se não estão armadas, defendem uma nação armada. São essas pessoas que têm sido responsáveis por clamar ou legitimar um projeto violento de desigualdade, discriminação e desinformação.

A validade e a imprecisão do conceito de trauma coletivo são bastante discutidas no mundo acadêmico. Tomo a liberdade aqui para usá-lo de forma livre e vulgar para expressar a raiva, o mal-estar, o medo e a dor que são disparados quando nos deparamos com os símbolos associados a tudo aquilo contra o qual lutamos e que, de alguma forma, tem tentado —muitas vezes com sucesso— nos aniquilar.

Mas, se o conceito de trauma coletivo é impreciso, o de trauma individual não é.

Foram as pessoas em verde e amarelo que me perseguiram nas redes, nas salas de aula e nas palestras. Foram esses sujeitos que desejaram minha morte, meu estupro e meu silêncio persistentemente ao longo dos últimos nove anos.

Moro na Irlanda, um país cuja vasta maioria de imigrantes elegeu Lula (PT). Nada mais óbvio que imigrantes como eu, saudosos da terra natal e torcedores da Copa, vistam as cores do time. Mas ontem, ao ver três pessoas na rua com a camisa da seleção, meu primeiro impulso foi de "alerta-distância-bolsominion", até que eu pudesse elaborar e reorganizar meu pensamento em questão de uma fração de segundo.

Todo mundo que é, de alguma forma, vítima desse governo, não se imagina confortável novamente em estar naqueles espaços — como fazíamos tempos atrás— de meio-fio de calçada pintado de verde e amarelo e bandeirinhas espalhadas por todos os cantos.

Há muitos anos, defendo que a gente precisa se reapropriar do assalto que fizeram com amarelinha, nossa fonte de orgulho do Brasil que deu certo e que nos alegra.

Símbolos não são coisas secundárias ou frívolas. Símbolos são expressões da nossa humanidade e capacidade de viver em sociedade. Sem eles, não existimos coletivamente. Por eles, pessoas e grupos vivem e morrem desde sempre. Muitos acham que símbolos nacionais deveriam ser esquecidos de toda forma. Tendo a pensar que não basta reclamar do sequestro da camisa da seleção: é preciso tomar ela de volta.

Mas isso é um trabalho que pode demorar tempo, justamente pelos motivos de todo o desconforto que a blusa ainda desperta. Por ora, estou entre aquelas que procura ressignificá-la optando por versões azul, dourada e branca. Ou mesmo usando-a em espaços seguros entre amigos. É o que é possível fazer no momento. Seguimos torcendo para a seleção cuja vitória representa não o esforço de um único atleta birrento, mas de um time inteiro que pode trazer o hexa para um Brasil que volta a esperançar.