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Cristina Fibe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Abusada aos 11 por dentista: 'Tão íntimo que pensei estar numa relação'

Cristina Fibe

Colunista de Universa

01/06/2023 04h00

Os abusos começaram quando Joana tinha 11 anos. Ela era uma menina cercada de tudo o que o dinheiro podia pagar: escola bilíngue, clube de elite, babá, motorista, roupas da moda. Ela também frequentava os consultórios mais badalados do Rio de Janeiro. Então o que aconteceu?

Quando precisou usar aparelhos nos dentes, sua família procurou o melhor ortodontista pediátrico da cidade.

Ele atendia crianças e adolescentes da alta sociedade carioca.

A riqueza não a protegeu: dos 11 aos 14, até que arrancasse o próprio aparelho com um alicate de unha, foi tratada com tanta intimidade que pensou estar num relacionamento amoroso com seu dentista.

"Apaixonei-me pelo meu abusador", disse a escritora Joana Aguinaga, hoje com 51 anos, à repórter Marcia Disitzer, do jornal "O Globo", em depoimento publicado há dois meses.

Depois disso, passou a receber uma enxurrada de mensagens de outras mulheres contando serem vítimas do mesmo homem —e ela nem tinha revelado o nome dele. Foi o padrão que o entregou.

O caso agora é investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Pela lei, qualquer contato sexual com menor de 14 anos é considerado estupro de vulnerável.

Quando a notícia-crime foi apresentada ao MP-RJ pela ex-promotora e advogada Gabriela Manssur, "O Globo" revelou o nome do acusado: Estélio Zen. O dentista, que fechou seu consultório em Ipanema, não se manifestou. A coluna procurou Zen pelo telefone de sua clínica, mas ninguém atendeu. Caso haja posicionamento, este texto será atualizado.


Joana contou à coluna que o dentista pedia que as meninas fizessem pose para fotos de corpo inteiro. "Acho que ele colecionava as imagens."

Ela destaca outros dois elementos que se repetem em mais de uma vítima: a negação do crime dentro da própria família —há casos de mães que foram abusadas pelo mesmo homem— e a ocorrência de outros abusos ao longo da vida.

Os casos ainda não pararam de chegar. Até agora, 28 mulheres lhe disseram compartilham o mesmo trauma —sete delas fazem parte da investigação do MP.

Joana as escuta e acolhe: "Sinto que não passei por isso à toa mas pra fazer tudo o que estou fazendo agora. Me sinto uma privilegiada por não ter enlouquecido e poder segurar essa onda. Não é ego, é senso de Justiça".

"Sair dessa bolha me dá uma força que transpõe toda a minha dor", diz, em referência ao "berço de ouro" no qual foi criada. Hoje, ela percebe que muita gente adulta daquele núcleo sabia que o dentista mais celebrado do momento era um abusador, mas deixava passar. A alta sociedade preferia o silêncio a um escândalo.

Joana demorou anos a entender o que tinha sofrido. Ela tenta explicar: "O abuso mina tanto a sua mente e o seu estado emocional que, mesmo diante do mais óbvio, você não consegue sair. A razão não serve pra essa vítima. É como se você estivesse se afogando e não soubesse nadar, não conseguisse ir até a bóia. Tem um processo interno acontecendo que você não tem tempo de elaborar, morre antes".

Décadas depois, Joana não é mais refém. A batalha, agora, é para que outras meninas fiquem protegidas disso —no consultório, na escola ou dentro de casa. O que ela sofreu, infelizmente, não é exceção.