A violência doméstica fora das estatísticas: por que números seriam maiores
O último sábado, 25 de novembro, foi marcado por inúmeras referências ao Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher. A data, oficializada pela ONU em 1999, foi escolhida em homenagem às irmãs Mirabal, ativistas dominicanas que foram assassinadas em 1960 pelo regime autoritário de Rafael Trujillo, e cujo legado de luta e resistência se converteu em inspiração para defensoras dos direitos das mulheres, em especial na América Latina.
Por força de lutas nacionais aguerridas e longevas pelo reconhecimento da gravidade, bem como do caráter público e social do problema da violência doméstica contra mulheres, no Brasil, o 25 de novembro costuma ser marcado por iniciativas, eventos e mensagens relacionados à Lei Maria da Penha, aos números de feminicídio e ao cenário sombrio de nossas estatísticas oficiais que apontam para o fato de que família e o lar muitas vezes é espaço de risco e violação para meninas e mulheres.
Não se cale. Denuncie. Estas são palavras de ordem frequentemente utilizadas em mensagens para mulheres em situação de violência doméstica, incitando que vítimas procurem autoridades quando diante de violações baseadas no gênero. As mensagens têm surtido efeito. De acordo com dados recentes, o número de registros oficiais de estupros e assassinato de mulheres cresceu, no Brasil, no primeiro semestre de 2023 comparado com o mesmo período do ano passado.
Ainda que alarmantes, os números dos registros públicos (também chamados de dados administrativos) não chegam a ser uma grande surpresa para profissionais que trabalham no ecossistema de enfrentamento às violências contra as mulheres. Registros oficiais (ou dados administrativos) são informações oriundas das bases públicas disponibilizadas, por exemplo, pelo sistema de saúde, pela segurança pública e pela justiça. Estes números são produzidos quando vítimas e agressores interagem com polícias e tribunais, profissionais de serviço social, políticas de saúde, abrigos e outros serviços, e permitem que tenhamos visibilidade sobre a demanda de mulheres violadas que chega ao Estado.
A organização e o uso de dados administrativos de alta qualidade são cruciais para compreender quais mulheres estão procurando serviços por causa da violência e quais serviços elas estão buscando, estimar a necessidade de cada serviço e seus custos; planejar a necessidade de formação e treinamento entre profissionais que estão lidando com essas demandas; bem como monitorar a execução de nossas políticas públicas, a fim de identificar déficits e problemas.
Embora tenhamos avançado enquanto sociedade na direção de tornar a violência doméstica contra mulheres um problema público e do Estado, as evidências apontam para o fato de que este ainda é um assunto majoritariamente tratado no âmbito privado em nosso país. Segundo dados trazidos pelo Mapa Nacional da Violência de Gênero, 6 em cada 10 mulheres que passaram por violência doméstica no último ano não fizeram registros policiais.
Lançado neste mês, o Mapa Nacional da Violência reúne em uma plataforma digital interativa alguns dos principais dados públicos sobre violência contra mulheres no Brasil, trazendo também as dez edições da Pesquisa Nacional da Violência Contra a Mulher (realizada pelo Instituto Data Senado e pelo Observatório da Mulher Contra a Violência do Senado Federal), a maior e mais longa pesquisa realizada com mulheres no Brasil, que ouviu, em seu último levantamento, 21 mil brasileiras, sobre suas percepções e vivências relacionadas a violência doméstica e familiar.
Quando perguntadas sobre o que fizeram diante da última agressão, 60% das mulheres brasileiras pesquisadas responderam que procuraram ajuda em suas famílias, 45%, buscaram apoio em igrejas e comunidades de fé, ao passo que 42% se voltaram para seus amigos. Os números da busca por segurança e acolhimento em suas redes pessoais e privadas são significativamente menores da procura por equipamentos públicos da rede pública, como as polícias, os equipamentos socioassistenciais ou mesmo a Central de Atendimento à Mulher, mais conhecido como 180.
Além da disparidade entre os registros policiais e o tamanho do fenômeno no Brasil, chamado de Índice de Subnotificação Policial, o Mapa Nacional da Violência de Gênero também traz o Índice de Subnotificação Desconhecida, situação em que as mulheres entrevistadas não admitiram espontaneamente terem vivido situações de violência doméstica, mas, quando apresentada a exemplos de violações, reconheceram já terem passado por estas experiências.
De acordo com este índice, três em cada dez mulheres brasileiras que não reconheceram, em um primeiro momento, terem sido vítimas de violência doméstica, admitiram terem sofrido violações específicas quando estimuladas de outras maneiras. Este dado sugere que os números de violência no Brasil são ainda maiores que nossos registros oficiais ou mesmo que nossa subnotificação policial, uma vez que muitas brasileiras ainda estão passando por processos complexos e, muitas vezes dolorosos, de reconhecimento e nomeação das violências vividas.
Dados são fragmentos de histórias que, quando organizados de forma a possibilizar reflexões de qualidade fornecem ferramentas que nos permitem entender dinâmicas, lacunas, demandas e prioridades. E os números trazidos pelo Mapa Nacional da Violência de Gênero nos chamam a atenção para o fato de que a maior parte dos casos de violência doméstica contra mulheres sequer virou registro oficial, e que parte significativa das mulheres que sofrem violações no âmbito familiar ainda não as reconhece e nomeia enquanto tais. Uma vez que informações de qualidade podem salvar vidas, o que vamos fazer diante deste cenário?
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