Opinião

Que futuro você imagina?

Eu conheci Dareen al-Bayaa no curso do 130º dia de guerra entre Israel e Hamas, que tem lugar na faixa de Gaza, e, em outros sentidos, não só lá. Dareen al-Bayaa é uma menina palestina de 11 anos, que perdeu sua família em um ataque aéreo.

Ela conta, em um vídeo publicado em @nytimes, que eles estavam todos na mesma casa, em uma região apontada por Israel como "zona segura", mas foi lá mesmo que a bomba caiu sobre seu pai e sua mãe; sobre as tias, os tios, as avós e os avôs, seus primos e irmãos. Só sobreviveram ela e um irmão de 5 anos.

Desde então, eles estão em um hospital do Qatar recuperando-se das graves lesões físicas que sofreram. Como ela, a Unicef estima que outras 19 mil crianças palestinas são órfãs ou não têm qualquer adulto que possa lhes oferecer cuidado.

Para quem tem alguma dúvida de que a orfandade é uma questão central nas guerras, assim como é nos territórios tensionados por conflito armado, Yolande Knell, correspondente da BBC News em Jerusalém, contou sobre a vida de algumas crianças que vivem a morte de seus familiares em Gaza.

Na reportagem, dá pra ver outras 3, entre as 19 mil crianças de quem foram arrancadas a família, a comunidade e a cidade. Pessoas para as quais a possível experiência material de cuidado está reduzida a muito, muito pouco.

Tem também a foto de uma bebê nascida de uma cesariana feita no corpo de sua mãe letalmente ferida. Ela tem um mês de vida e não tem nome. "A gente simplesmente chama ela de filha de Hanna Abu Amsha", contou a enfermeira. Ainda não se conseguiu contato com qualquer pessoa da sua família.

Dareen al-Baya parece dizer de tudo isso na sua história. A sua fala é dilacerante, ninguém diz nada em seu lugar, Dareen pertence a cada uma das palavras que enuncia. Eu peço que você abra o vídeo e a escute. Vai lá e volta aqui, me ajuda a pensar.

Entre todo o horror, a indignação, a paralisia e os movimentos descoordenados que esse encontro produziu em mim, escrevo movida pela vontade de falar com as amigas e os amigos (foi como carta que esse texto nasceu): preciso endereçar minhas questões e, entre esses destroços, tentar encadear o pensamento e produzir algum movimento.

Na mesma matéria da BBC, os números são assombrosos: segundo as autoridades de saúde palestinas, 11.500 pessoas com menos de 18 anos já foram mortas nessa guerra. Tem também aquelas gravemente feridas, "com ferimentos que mudam completamente uma vida".

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Esse texto conta que as crianças compõem quase metade da população de 2,3 milhões de pessoas de Gaza. Não precisamos ser especialistas em geopolítica para entender que as razões disso são múltiplas, e certamente incluem a curta expectativa de vida em territórios deflagrados. Nós, brasileiras e brasileiros, infelizmente, sabemos bem disso.

As crianças palestinas, essas crianças sobre as quais falo hoje, tiveram suas vidas destroçadas pela guerra. "De acordo com um relatório recente do Euro-Mediterranean Human Rights Monitor, um grupo sem fins lucrativos, mais de 24 mil crianças perderam um ou ambos os pais".

Esse fato, hoje, me laça em mais uma volta da repetida questão. Dareen me devolveu a pergunta indignada: quantas gerações precisarão se haver cotidianamente com o que se fez —e com o que não se fez— em cada um desses 130 dias que parecem não ter fim?

Essa pergunta, é fundamental dizer, inclui a experiência das crianças que ficaram órfãs e das que não ficaram, das gerações de pessoas que vivem em Israel, e que foram brutalmente marcadas pelo ataque terrorista que vitimou os que morreram e os que sobreviveram ao 7/10. Essa pergunta inclui judeus, palestinos, nós, humanos que restamos da violência que muda o curso de vidas, no seu sentido individual e coletivo.

Eu sei que Dareen fará uma resposta radicalmente pessoal com o que lhe foi feito. É assim para ela e para todos os seus contemporâneos, os palestinos e os israelenses, os que vivem no corpo a violência. Mas, sei também que as condições que as trouxeram até aqui, ao contrário, não são privadas, e é deste ponto comum que a construção de uma ou de outra resposta será possível.

Quantas gerações precisarão trabalhar para tornar possível sustentar a experiência de paz?

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Não um ideal imaginário de paz, mas a possibilidade do convívio? Do com? Da vida? De que
modo isso pode ser realizado?

É o que diz o ativista israelense Alon Lee, que coordena o "Standing Together" com a palestina Sally Abed: ninguém vai sair dali. Esse é nosso ponto de partida para construir.

A Ética do Cuidado, ao me apresentar as políticas da interdependência, faz considerar, por outro ângulo, algo que a psicanálise já me ensinava ao formular que não há Sujeito sem Outro. Esse outro ângulo, o da Ética do Cuidado, me devolve alguma força para cruzar o debate sobre a procura de culpados e as suas infindáveis camadas de discussão —e me mover em direção ao ponto da urgência da defesa da vida. É só sobre isso que falo.

Não tem jeito, é preciso perder para viver com os outros. Mas essa não é, e nem nunca foi, uma questão moral, ela é ética: não há vida sem perda. Priorizar o cuidado com a vida inclui a perda do espaço, de bens, das certezas sobre si e sobre o outro. A vida possível inclui a perda.

Quem mata para ficar com tudo, quem mata para acumular, aquele que não sustenta a inexorável condição da divisão, também não se protege, e expõe os seus a mais violência. Aquele que entende que matará o último outro para construir a sua paz, subjuga sua condição humana de interdependência.

É por isso que o cuidado é uma política. É por isso que a ideia de defesa precisa, de um lado, encontrar o limite da vida, e, de outro, expandir seu gesto em nome da vida.

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Nas conversas com participantes do Judias e Judeus pela Democracia São Paulo (JJpD-SP), o coletivo que me acolhe, percebo que não é só pra mim que ser judia tem a ver com a ética proposta pela interdependência.

Com dividir, com perder, com fazer com.

O cuidado, tenho entendido nesses tempos, é um instrumento político de enfrentamento da segregação. E porque isso me chega pelo judaísmo, é insuportável testemunhar o que está acontecendo com a vida em Gaza.

*Ilana Katz é psicóloga, psicanalista e pesquisadora da USP.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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