Ainda Estou Aqui é sobre mulheres que ficam e suportam a incerteza e a dor
No dia 7 de novembro de 2024, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, ou Eunice Paiva, completaria seus 95 anos. Nesse mesmo dia, estreou no Brasil o novo longa-metragem de Walter Salles, Ainda Estou Aqui, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que conta a história de sua mãe, essa mulher, Eunice, ainda pouco ou nada conhecida pela maioria de nós. A data da estreia, portanto, não foi mera coincidência, e sim mais um detalhe projetado com delicadeza por esse filme, tão significativo neste momento do Brasil.
São muitas as reflexões que Ainda Estou Aqui nos provoca e sobre as quais este texto poderia se debruçar, das impecáveis escolhas cinematográficas às questões políticas e sociais que o filme encara ou mesmo atravessa de modos menos evidentes. Poderia falar do quão terrivelmente atual é a violência de Estado, que existe desde a fundação deste país, mas que, com a última ditadura, se institucionalizou e se entranhou ainda mais na nossa cultura. Outra questão um pouco mais sutil, porém, ficou ressoando desde que assisti ao filme, nesse mesmo dia, 7 de novembro. Algo que, na tentativa de dar um contorno, chamo aqui de mulheres que ficam.
Eunice é uma mulher casada com o ex-deputado Rubens Paiva, com quem tem cinco filhos e vive em uma grande casa, de frente para o mar, no Rio de Janeiro, no início dos anos 1970, isto é, no auge da ditadura militar. Dona de casa, sua principal ocupação é cuidar dos filhos e da gestão desse espaço. No dia 20 de janeiro de 1971, policiais armados entram pela porta da frente e levam Rubens para prestar depoimento no quartel do comando da 3ª Zona Aérea. O filme, então, se volta inteiramente para essa mulher que, depois de ficar presa por doze dias, se vê sozinha com os filhos, a esperar, no primeiro momento, o retorno do marido, que nunca voltaria.
Quando se dá conta disso, sua espera se volta para alguma justiça e pelo reconhecimento, por parte do Estado, da tortura e da morte desse homem. A vida de Eunice é, então, transformada nessa e por essa longa e insuportável espera.
Isso faz com que esse filme entre para o singelo rol de obras dedicadas às mulheres que ficam. São muitas as narrativas sobre os que vão, torturados, assassinados, deportados, tidos muitas vezes como heróis da nação - histórias, sem dúvida, que devem ser contadas e recontadas. No entanto, quase nunca escutamos falar das que ficam.
O que é ficar e esperar? Ficar e conviver com a absoluta incerteza? Ficar e encarar o abismo dessa dor? Ficar e precisar seguir, sem saber como se sustentar nessa espera?
A angústia e a solidão de Eunice Paiva remetem também a mulheres como Romana, personagem de Eles Não Usam Black-tie, outro filme brasileiro de 1981, dirigido por Leon Hirszman. Romana é também dona de casa, mas, diferente de Eunice, integra uma família de operários do interior de São Paulo. Ambas compartilham, porém, uma situação similar, com os maridos perseguidos pela ditadura. No caso de Romana, seu marido, Otávio, após ser preso e torturado por participar do movimento sindical à época, é solto e volta a trabalhar na fábrica, ao lado do filho mais velho, Tião.
Com a iminência de uma nova greve, Romana se vê aflita com a possibilidade de ter o marido preso novamente e, agora, também o filho. Ambos riem quando ela pergunta, no dia marcado para o início da greve, se eles estão levando o endereço de casa no bolso. Eles não entendem. Ela explica: se acontece alguma coisa, vão saber onde me avisar. Os dois homens riem e dizem para ela não se preocupar, que nada vai acontecer. Otávio é novamente preso e o filho, espancado. Romana antevê o horror, pois sabe que é ela quem fica, quem espera, quem recebe a notícia e quem deve sustentar tudo enquanto a tragédia invade a família.
Ambas, Eunice e Romana, em diferentes momentos de seus filmes, intuem que o pior pode acontecer a qualquer momento - e, de fato, acontece. Elas ficam nas janelas esperando os filhos voltarem e tentam conter os maridos, pedindo que se cuidem, que não se exponham demais. São elas, cada uma em seu contexto, que têm de sustentar a espera quando a polícia leva seus companheiros presos. Otávio ainda volta. Rubens, não.
No filme de Walter, Eunice é interpretada pela atriz Fernanda Torres, filha de outra atriz, Fernanda Montenegro, que, no caso, interpretou Romana no filme de Hirszman. Duas artistas grandiosas que atravessaram também a ditadura. Fernanda-filha era ainda pequena quando os militares tomaram o poder, mas, como ela diz em entrevistas, já percebia o medo na mãe, que trabalhava com o marido no teatro e tinha os amigos frequentemente presos e as peças ameaçadas pela censura.
Também são elas, as atrizes, testemunhas da violência e da repressão da ditadura militar. As suas histórias e de inúmeras mulheres se interconectam e se retomam umas às outras na narrativa de Ainda Estou Aqui. Essa é mais uma força política e poética desse filme e que o título, talvez sem essa intenção, também evoca. Elas ainda estão aqui, à espera de que suas histórias sejam, enfim, reconhecidas.
A dor de Eunice também nos leva à Marguerite Duras - cuja dor, no caso, dá nome a um texto. Escrito por Duras após a Segunda Guerra Mundial e publicado apenas em 1985, A Dor se passa nas últimas semanas antes do retorno de Robert Antelme, seu marido preso e deportado para os campos de concentração nazistas, por integrar a Resistência Francesa.
A narrativa começa em abril de 1945. Uma mulher, Duras, sentada na sala, perto da porta de casa, imagina o marido tocar a campainha. Quem é?, ela perguntaria. Sou eu, ele diria. Essa é uma possibilidade, ela pensa, é possível que ele volte. No momento seguinte, a imagem dele, morto em uma vala escura, assassinado no último minuto, a invade. Ela se vê, então, deitada ao lado desse corpo sem vida. Duras já não consegue comer. Todo pão a faz pensar que ele pode já estar morto de fome. Em sua escrita, ela oscila entre a esperança de tê-lo ainda vivo, em algum lugar, e a certeza de estar morto, abandonado em Buchenwald.
A Dor - na ausência de outra palavra - é, sobretudo, a narrativa dessa mulher que não foi presa, que ficou e que, por isso, deve sustentar essa espera insustentável. Duras escreve como quem tenta, de alguma forma, manter-se também viva e não afundar inteiramente no horror. Uma das palavras que mais se repetem em seu texto é fatigue, cansaço, esgotamento, exaustão. Sua dificuldade maior é conseguir levantar-se, seguir. Mesmo assim, a cada dia, ela vai à estação de trem esperar Robert, que não volta. Ela decide não sair mais de casa e, na manhã seguinte, vai outra vez à estação. Assim são os seus dias.
Em determinado momento d'A Dor, Duras diz já não existir para além da espera. Ela não se diferencia mais desse tempo em suspenso, impossível. Essa frase poderia ser também de Eunice Paiva. Suas existências se confundem com a espera insuportável a que são submetidas.
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Quero receberA violência estatal invade as existências dessas mulheres, transformando-as em uma infinita espera, que reverbera até o fim de suas vidas. Ainda que Robert retorne (e ele retorna, sendo resgatado em Dachau quase morto: 32 kg para 1,80 m de altura) ou que a morte de Rubens seja reconhecida (como foi, com o atestado de óbito finalmente emitido pelo Governo Federal em 1996), elas já não existem para além dessa espera.
Talvez por isso também o texto A Feiticeira, de Jules Michelet, fosse tão importante para Duras. A partir da leitura que faz desse livro, ela pensa nas mulheres que, na Idade Média, eram deixadas sós, quando os homens partiam para as cruzadas. Ao longo de meses, elas ficavam em suas cabanas, isoladas. Nessa solidão inimaginável, elas tiveram de aprender a falar com as plantas e os animais, a inventar um novo uso da língua. Pouco tempo depois, foram queimadas nas fogueiras como bruxas, por terem aprendido a voz da liberdade, como diz Duras. Dito de outro modo: em meio à dor da espera, é preciso inventar outra língua, outros modos de se expressar.
De algum modo, ficar tem também esse lado. É na solidão indizível da espera que essas mulheres, por vezes, aprendem uma nova voz. Não à toa, depois da guerra, Duras se torna a escritora que é, escrevendo sempre em defesa de uma linguagem não dogmática, não didática; trazendo para o corpo do texto uma dor que não é só sua, mas de todos os seres oprimidos - o que, em sua obra, inclui até as moscas. Tampouco à toa, depois da morte de Rubens, Eunice decide voltar a estudar, se forma em Direito e se torna uma das mais importantes juristas na luta pelos direitos dos povos indígenas.
Em meio à dor, à solidão e à tragédia indizível de cada uma, essas mulheres (que ficam) inventaram e aprenderam uma nova voz. A coragem absoluta de atravessar a espera faz delas heroínas, tanto quanto ou mais do que seus companheiros. E tudo isso faz dessas obras e dessas histórias incontornáveis, necessárias e urgentes, para que possamos, quem sabe, aprender um pouco com essas vozes e a potência que carregam; e que possamos, também quem sabe, apontar para outros futuros, inventar novos devires contra a violência do passado.
*Isabela Bosi é escritora e doutora em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, com tese sobre os textos de guerra de Marguerite Duras. Realizou pesquisa na Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3 (bolsa CAPES) e no Institut Mémoires de l'édition contemporaine. Estudou História da Arte na Universidade de Santiago de Compostela, além de cursos livres na University of Toronto e na Université Catholique de Lyon. É autora dos livros "Elida Tessler: alguns envios de tempos e memórias" (UFMG, 2023); "Bar do Anísio: casa de liberdades" (UFC, 2013); "Quase" (Nadifúndio, 2019) e "Sobre viver" (Nadifúndio, 2019), traduzido para o espanhol e publicado pela Funga Editorial, na Argentina, em 2023.
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