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Ana Canosa

Por que as meninas beijam outras meninas? Por desejo e liberdade

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Imagem: Getty Images

Ana Cristina Canosa Gonçalves

Colunista do UOL

03/09/2020 04h00

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Pergunta da leitora: Gostaria de entender sobre a curiosidade que as adolescentes meninas tem de ficarem entre si.

Eu fico me perguntando se essa curiosidade é nova ou se apenas a liberdade sexual das últimas décadas tem favorecido a expressão natural desse fenômeno. Experimentações homoafetivas eventuais são bastante comuns e fazem parte do desenvolvimento natural da adolescência e do processo de construção da identidade sexual.

Principalmente no final da puberdade, quando o corpo já está maduro e as relações amorosas ainda são muito inseguras, a aproximação física com os amigos, trocas de carinho, podem gerar alguma excitação, sem que a atração sexual seja de fato o motivador do comportamento. Daí decorrem descobertas sobre a própria orientação sexual e afetiva, que serão aos poucos incorporadas ao processo de construção da identidade sexual, que normalmente só assume a sua forma definitiva no final da adolescência.

É importante reforçar que, com os movimentos feministas e da diversidade sexual, mais do que a heteronormatividade tem sido questionada: descortinou-se uma fluidez na orientação do desejo. A bissexualidade se apresenta como uma possibilidade concreta e não uma falta de posicionamento, e a pansexualidade desconstrói a atração por gênero específico. Entre ser assexual, heterossexual ou homossexual existe uma gama de possibilidades.

Nesse sentido, muitos adolescentes da atualidade crescem envoltos em concepções mais abertas no que se refere as múltiplas interações afetivas e sexuais, o que amplia a percepção sobre si mesmos. Muitas garotas beijam outras sem aflição sobre se isso significa que sejam lésbicas ou bissexuais, pois entendem que é um processo que pode ser compreendido com o tempo ou quem sabe que apenas reflita parte de um desejo.

Tem sido uma exigência dessa nova geração que família e sociedade sejam menos ansiosas pelo enquadramento tradicional binário, que coloca as pessoas em "caixas" na expressão da sua sexualidade.

Sei que não é fácil para muitos familiares, que foram criados em épocas onde provar-se heterossexual era uma condição esperada desde cedo, para que houvesse a sensação de pertencimento social. Diante das vivências dos filhos e netos, preocupam-se em nomear para se posicionarem socialmente. Mais desafiador é viver sem rótulos: minha filha tem namorado hoje, mas amanhã, quem sabe, uma namorada! Entendo a aflição.

E já que estamos admitindo que atravessamos e somos atravessados pelas questões de gênero, alguns autores destacam que o prazer sexual da mulher ainda é construído com ênfase na importância do companheirismo e no apoio psicológico mútulo. Essa construção predominantemente patriarcal e heteronormativa faz com que homens e mulheres sejam instigados a assumirem papéis diferenciados, onde amor e afeto estariam ligados ao sexo feminino e o prazer sexual, ao masculino. Uma impregnação dos atributos do amor romântico.

Isso colocaria as relações entre mulheres menos voltadas ao sexo genital, o que favorece interação sem a ansiedade do comprometimento de uma relação sexual que envolve, por exemplo, penetração. Como me disse uma adolescente uma vez: eu gosto de fazer sexo com homens, me atraio por eles. No entanto, na balada, quando só estou a fim de beijar para me divertir, prefiro as mulheres que não ficam querendo pegar nos meus peitos nos primeiro 5 minutos, como os meninos fazem.

É interessante notar que, mesmo que o sexo entre mulheres não seja meramente voltado a carícias e ao sexo oral, essa é a impressão que as pessoas têm, a partir inclusive do que com frequência é retratado em filmes eróticos: há infinitamente mais beijos e carícias trocados entre duas mulheres do que entre um casal heterossexual.

Em contrapartida, o movimento de empoderamento e protagonismo feminino, muito forte hoje entre as jovens, também leva a um fenômeno de transgressão e liberdade para o beijo entre garotas, como uma expressão legítima de desejar e ser dona das próprias vontades, contrariando a ideia de uma sexualidade passiva e limitada ao amor.

Finalmente, gostaria de lembrar que algumas pesquisas demonstram que mulheres heterossexuais respondem sexualmente a estímulos visuais eróticos entre duas mulheres e que embora isso não signifique necessariamente um desejo de realização, pode indicar maior facilidade para experimentação à parte da própria orientação sexual.