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Ana Canosa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mulher empoderada também sofre: equilíbrio emocional não é autossufiência

franckreporter/Getty Images
Imagem: franckreporter/Getty Images

Colunista de Universa

31/08/2021 04h00

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A Marcella tem 35 anos, é solteira, independente e vacinada, mora sozinha, o perfil de aspiração das mulheres da geração millenium. Ah, e faz terapia.

Durante a sua juventude e idade adulta aprendeu conceitos importantes como o autogerenciamento, o autocuidado, a autoconsciência, o autoerotismo. Mas claro que a doutrinação da gestão de si, para promoção de saúde e bem-estar, um forte apelo cultural dos últimos tempos - não dá conta dos dilemas emocionais. Não caia você também nesse engodo.

A todo momento somos bombardeados pelas fórmulas que prometem ensinar como alcançar a habilidade de dar conta sozinhos (as) de todas as dimensões da sua vida, com sucesso garantido e promessa de longevidade. Desculpe decepcioná-los (as), mas a vida emocional não é esse fluxo contínuo na comunicação entre emoção - sentido e ação.

A Marcella, por exemplo, toda trabalhada no feminismo e na independência emocional, se meteu em uma relação com um homem casado que lhe rendeu um sentimento de rejeição e aprisionamento sem fim. Pior do que se reconhecer com a necessidade de ser "desejada" e escolhida por ele, foi conviver com essa consciência. Como, ela, que mira na independência foi cair nas armadilhas do amor romântico?

Foram alguns meses de psicoterapia, em um trabalho firme, intenso, de autoconhecimento e enfrentamento de uma ansiedade que ameaçava a sua capacidade de fazer as coisas simples do dia a dia e perceber o mundo a sua volta no aqui e agora, não no ontem, nem no amanhã. Para piorar o cenário, Marcella estava nessa época vivendo um ano sabático em outro país, trabalhando para juntar um dinheiro. A solitude era misturada com a solidão concreta, projetada na falta de contato com pessoas significativas de sua vida.

O mergulho na crise emocional fez Marcella aprender muito sobre si mesma, o que traz da sua relação familiar e identificar sua vulnerabilidade. As relações amorosas seguintes, uma sequência de encontros e desencontros fugazes, mediados pelos apps, reforçavam a ideia de que não é fácil mesmo encontrar um parceiro, com quem se tenha química sexual, bom humor e interesses em comum, além de disposição para um compromisso.

Então, ela foi desenvolvendo um plano de saúde para "se bastar", um conceito bem equivocado, diga-se de passagem. Manter a individualidade é respeitar o seu processo pessoal, seus sonhos e objetivos; individualismo é a satisfação exclusiva independente da parceria. No primeiro caso, há espaço para uma vivência de amor baseada no compartilhamento, sem que se perca a satisfação nas realizações pessoais, já no individualismo a experiência do amor estará comprometida pela carência de intimidade emocional.

Ser emocionalmente maduro não tem relação com essa ideia de autossuficiência, mas com a capacidade de discernir o que é seu e o que é do outro, além de se responsabilizar por comportamentos e escolhas.

E não se engane: qualquer pessoa considerada madura hoje, pode guardar uma criança desamparada em si amanhã, quando se ver tocado profundamente na sua fragilidade humana, basta o cenário ideal: pode ser uma perda de emprego, a morte dos pais, uma paixão, um problema de saúde, uma separação ou o medo de morrer.

Depois de quase repetir a versão sujeito casado, dessa vez uma passagem curta e pouco intensa, eis que um homem livre apareceu para lhe alegrar os dias. Química sexual, interesses em comum, bom humor. Mais do que sexo, vontade de estar juntos. Não fosse uma certa resistência dele em aparecer nos dias combinados, algo que se podia justificar pela falta de compromisso já esperado nos dias de hoje. Não fosse uma história de separação meio esquisita, mas quem não tem uma para contar, não é mesmo? Não fosse também uma certa alternância de humor e a ansiedade por uma crise profissional, mas acontece nas melhores famílias, certo? Era o prenúncio da repetição rondando Marcella, alimentando a sua ansiedade, ao mesmo tempo que a sua esperança de estar enganada.

Eis que o sujeito foi dar na casa da ex-mulher, em uma crise de quase pânico, a fim de encarar a separação, que, no caso, já tinha mais de dois anos, para em seguida, bater na casa dela, pedindo Marcella em casamento, fazendo planos de paternidade. Ah, claro, eles se conhecem só há 2 meses, mas está bom, tudo é muito rápido hoje em dia.

Marcella ficou tão ansiosa e desequilibrada - para usar um jargão do autogerenciamento da saúde mental física e mental - que percebeu a enrascada em que estava se metendo. Juntou toda a coragem do mundo para dar fim aquele protótipo de relacionamento, mesmo que seu coração estivesse em pedaços.

Um mês mais tarde, além do abatimento natural pelo furacão emocional, ela estava envergonhada. Não pelo limite que havia colocado, decidindo pelo afastamento, mas porque continua com a crença de que uma ação de autocuidado, baseada no autoconhecimento, iria livrá-la do sofrimento e da decepção. Como se a terapia pudesse lhe dar um tipo de "superpoder", que percebe tudo e coloca um ponto final ao menor sinal de repetição e sofrimento, como se nada fosse.

Ela crê que assumindo o código de conduta sobre saúde emocional e bem-estar dos novos tempos, que pressupõe o poder para manter-se independente e sã é capaz de barrar todo tipo de instabilidade emocional, falta existencial, e desejo. Não querida, vem comigo. A maturidade emocional é só ver com mais clareza o caminho, conhecer melhor o mapa e carregar suprimentos, mas isso não garante que durante a jornada, a gente não sofra e perca a bússola.