Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Então vamos nos separar': ameaça de vínculo reproduz feridas infantis
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Tenho memória de passarinho, e para situações desagradáveis e tristes ela diminui ainda mais. Guardo poucas cenas da infância, mas tenho o registro geral de uma vivência positiva, de quem brincou bastante com as amigas do bairro, que adorava a festa da primavera da escola e se deitava depois do almoço no chão de ladrilhos vermelhos da casa da minha avó materna, que era o lugar mais fresco no verão.
Mas de um punhado de cenas, me chama a atenção lembrar uma passagem, com a filha de uns amigos dos meus pais, que hoje eu não tenho a mínima noção de quem é. Não tínhamos laços fortes, nem convívio frequente. Ela estava em meu quarto e viu uma bonequinha pequena que eu tinha, toda feita de croché, vestido branco com barrado vermelho e um charmoso chapéu. Acho que tinha uma sombrinha também, assim em miniatura, com a estrutura feita de palitos de dente ou algo assim.
Eu sei que a menina cismou com a boneca e pediu para eu dar para ela, e quando eu disse não, ela ameaçou "se não me der, não serei mais sua amiga". Levou a boneca e eu chorei a noite toda. A ameaça de vínculo funcionou. E eu nunca me esqueci disso, da tristeza, do sentimento de injustiça, da raiva, e de uma percepção, muito rudimentar, de que eu havia sido manipulada. Eu devia ter no máximo 8 anos de idade.
Infelizmente é comum aprender a ameaçar o vínculo afetivo desde a infância. Quantos cuidadores, irritados com as crianças porque elas os frustraram nas suas expectativas (porque demonstraram raiva, desatenção, ou só porque quebraram copos) usam frases do tipo: "vou largar você no orfanato!" Boa parte das vezes —quando se tem alguma vergonha na cara— a ameaça do vínculo não é assim tão descarada e bizarra, mas acontece pelo silêncio de reprovação, os dias de frases frias e cortantes, a distância afetiva, a falta de toque.
As crianças crescem com a sensação de que devem evitar desagradar, de que seus comportamentos podem gerar uma grande tragédia. Excesso de autocrítica, alarme ligado o tempo todo, insegurança diante de figuras de poder, inabilidade de lidar com a própria raiva, embotamento do desejo e da espontaneidade. Há também os que perpetuam a ameaça de vínculo aprendida na infância, agora com seus filhos(as) e pares.
Nas relações de compromisso, é a coisa mais comum. Diante dos tão costumeiros desafios para chegar a acordos, ceder e lidar com a inevitável frustração de não ter o que se quer, pessoas vão dormir na sala, ficam uma semana sem conversar, passam a fazer coisas que não são habituais e que normalmente deixam a parceria insegura (como sair sem avisar, não mandar mensagens). Há também os que ameaçam verbalmente: então vamos nos separar —os que saem de casa, voltam, saem de casa, voltam— em uma espiral infinita de ameaça e reconciliação.
No sexo isso também acontece com frequência, quando alguém entende a recusa sempre como algo pessoal, sem levar em conta outras tantas situações da vida, como as dores de cabeça, o estresse, a falta de sono, os hormônios, preocupações, ou uma conjuntura de fatores. Começam as indiretas, o mau humor, a rispidez, as frases tortas, "você deve estar saindo com alguém".
É interessante como a ameaça de vínculo leva as pessoas a ficarem aprisionadas em si mesmas, seja o inseguro que fica o tempo todo achando que fez algo errado, seja o perverso, que manipula para ter controle sobre o outro e levar vantagem. E como o amor requer sair de si mesmo para ir ao encontro da alteridade do outro, uma relação dessa natureza para nada mais serve do que reproduzir as feridas infantis.
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