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Ana Canosa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Desejo fluido: por que há 'héteros' que traem com pessoas do mesmo sexo?

Mixmike/Getty Images
Imagem: Mixmike/Getty Images

Colunista de Universa

01/02/2022 04h00Atualizada em 01/02/2022 15h49

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Uma das motivações para a infidelidade conjugal é a relação sexual com pessoas do mesmo sexo. Com frequência pessoas comprometidas em relações heterossexuais, curiosas por ter experiência homoerótica, o fazem na clandestinidade, por receio de colocar o seu casamento em risco. Uma ilusão, pois o risco já está posto na medida em que o desejo se sacia em outros corpos.

Embora a revelação da infidelidade provoque um abalo considerável, é o desejo por terceiros e o que fazer com ele o que ameaça quem foi criado em contextos monogâmicos. Quando o sexo fora do casamento envolve uma orientação sexual diferente, é mais um ingrediente para acomodar naquilo que parecia certo e controlado.

Marisa é uma mulher lésbica, de 30 anos, que tem uma grande predileção por fazer sexo com mulheres casadas com homens. Ela se sente dominante, o prazer de percebê-las tímidas, de lentamente revelar pontos em seus corpos que desconheciam, de lhes escutar o gemido, fazer desabrochar novas sensações. E ela não é a única.

Outras mulheres e muitos homens homossexuais também experimentam esse lugar potente de desejante e desejado, na medida em que são eleitos para a experiência segredada do desejo entendido como transgressor, que se submete ao novo, acompanhado pelo medo e o prazer de ser revelado.

Enquanto a orientação homoerótica for condenada a marginalidade em nossa sociedade, mais pessoas tentarão enquadrar-se em relações heterossexuais. Afinal, são os casais heterossexuais que têm "permissão" para expressarem seu afeto livremente, celebrarem seu amor e constituir família.

Lutar contra a homofobia dentro da família requer coragem, pois coloca-se o sentimento de pertencimento em terreno movediço. O psicólogo alemão Kurt Lewin, que teve familiares mortos em um campo de concentração quando o nazismo imperava em seu país, passou a estudar a inter-relação entre a pessoa e o grupo, afirmando que o indivíduo e o entorno nunca devem ser vistos como duas realidades separadas.

Em especial, reforçou a ideia de que pessoas que fazem parte de grupos minoritários (não em quantidade, mas em relação aos pressupostos normativos da sociedade a qual pertencem) com frequência sofrem com sentimento de pertença negativo, haja vista que nem se aceitam como minoritários, nem são aceitos no majoritário, que os repelem. Estar segregado por qualquer condição criada para conceder privilégios a uma camada da população, seja por condição racial, sexual, religiosa, socioeconômica, ou outra, é injusto, doloroso e desumaniza a pessoa humana.

Se a homossexualidade ainda é tão condenada, a bissexualidade então, nem se fale. Na ânsia de mantermos um pertencimento binário - ou hétero ou homo - ou homem ou mulher - ter uma orientação voltada aos dois gêneros pode ser muito ameaçador.

Não estamos acostumados a fluidez do desejo. Pessoas bissexuais com frequência são vistas com desconfiança, consideradas confusas, imaturas e pouco corajosas para assumir uma suposta "condição homossexual". Essa falta de legitimidade muitas vezes empurra pessoas bissexuais a viverem suas experiências homoeróticas na clandestinidade, cindindo ainda mais a sua identidade sexual e o seu pertencimento social.

A discussão sobre o que leva alguém a infidelidade conjugal não pode se restringir somente a vontade de variação sexual, o apaixonamento, ou as insatisfações conjugais - ela tem que ser ampliada para a orientação do desejo, pois socialmente até as traições são enquadradas em categorias: as mais e as menos aceitáveis.

Enquanto não convivermos melhor com a diversidade sexual, fortalecendo o sentimento de pertencimento positivo de quem se vê fora da heterocisnormatividade, muitas pessoas continuarão a buscar, no casamento heterossexual, a adequação normativa, que quase sempre leva a insatisfação sexual de todos os envolvidos.