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Ana Canosa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Para lidar com fim, filha de 7 anos faz festa e celebra separação dos pais

PeopleImages/Getty Images/iStockphoto
Imagem: PeopleImages/Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

10/09/2022 04h00

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Julia tem 7 anos e está vivendo a separação dos pais. Acompanhei o processo do casal por mais de um ano, de mãos dadas, organizando sentimentos, buscando soluções para o que nomeamos uma 'desconexão' entre eles. Não que não houvesse intimidade emocional, algum sexo gostoso e ótimos momentos de lazer partilhados entre eles. Mas também os problemas de convivência, as diferenças, as necessidades individuais abriram uma fissura na dinâmica do casal.

Honram mais que tudo a história do amor, que revisitamos desde o início compreendendo o que cada um sentiu e as expectativas que projetaram um no outro. Mas algo havia se perdido, que não conseguimos reavivar com a intensidade necessária para o casal decidir "recasar". A separação veio com muita dor, mas também como uma possibilidade de dar destino à angústia.

Com todo o cuidado, eles foram avisando Julia sobre a possibilidade da separação. Começaram a ter momentos individuais com ela, e outros em família, até que foi chegado o dia de explicar que a partir daquele instante, os pais não namoravam mais. Ela pareceu entender.

Alguns dias depois, Julia estava com o pai, em casa, e resolveu fazer uma celebração para a separação. Convidaram a mãe para que se unisse a eles. Ela e o pai se encarregaram da decoração que ela fez questão de fazer, com papel picado colorido, enfeitando a sala.

Como lhe é de costume - e como é usual nessa idade - resolveu elaborar a situação da maneira mais lúdica possível. Microfone em punho para os discursos, ficou ali, como uma espécie de mestre de cerimônias, indicando que cada um deveria dizer o que gostava na pessoa do outro, no fundo para que ela mesma pudesse escutar o quanto pai e mãe se admiravam, o quanto aprenderam na jornada que tiveram juntos - o quanto se amaram e se amavam ainda, mas de um jeito diferente agora.

Pediu uma música para cada um, a fim de eternizar esse encontro e depois sugeriu a dança, que, segundo ela tinha que ter. Casamentos acontecem dessa maneira, nada mais justo que os divórcios também tenham a sua comemoração triunfal. Ao final, comeram os muffins que ela havia feito com o pai, simulando o bolo e depois, foram dar conta da vida.

Rituais nos ajudam a concretizar significados simbólicos, e é interessante como músicas, cenas e determinados objetos se tornam depositários de muitos sentidos. Os amores de nossas vidas deixam memórias em roupas, anéis, fotografias, guardanapos escritos em mesas de bar. Rupturas são sempre dolorosas e levam tempo para cicatrizar.

O Museu das Relações Terminadas (Museum of broken relationships) na Croácia, por exemplo, surgiu para dar destino e favorecer a elaboração das dores emocionais, recebendo doação de objetos de pessoas de todas as partes do mundo - que contam um 'pedaço' de uma história de amor.

No acervo, direto da Eslovênia, tem um anão de jardim, que voou no carro novo do (ex)marido, no dia do divórcio; as entradas para as olimpíadas do México de 1968, eternizando o primeiro encontro de um casal; o vestido do casamento que não chegou a ser realizado, pois o (futuro) marido morreu em um ataque terrorista dias antes na Turquia. Tem a bússola - uma promessa romântica de manutenção do caminho unido - para algum tempo depois, "sem cerimônia" o presenteador dizer "Não dá mais". Tem porta-copos de crochê, um mimo feito pela mãe para sua filha síria ao se casar e morar longe; o lenço da sogra com Alzheimer, para que a nora pudesse secar suas lágrimas após uma última conversa lúcida.

É de uma delicadeza infinita perceber a narrativa das pessoas sobre momentos tão emblemáticos de suas vidas afetivas. Aliás, eu sempre digo para meus pacientes que, mesmo que haja dor, decepção, mágoa, traição, é preciso fazer uma narrativa positiva sobre a história que vivemos com alguém - ou ao menos sobre a decisão de nos separarmos.

A aliança tem que ser com a vida e não com a morte, com a possibilidade de termos prazer no futuro e não com a dor lancinante do que se perdeu. Sei que às vezes demora, mas, como tudo na vida, é um processo e até a raiva, se bem canalizada, pode mobilizar reforço de autoestima e proteção do ego. É tempo de lamber as feridas.

Julia, nem bem aprendeu a ler e já possui uma sabedoria milenar. Claro que, depois de alguns dias da cerimônia do divórcio, teve um ataque de birra e demonstrou toda a indignação pela separação dos pais. E assim, provavelmente, ela vai alternar paz e guerra, dias de tempestade e dias de sol, igualzinho a seus pais.

É um processo, querida Julia, um processo. Tenha paciência com você mesma e receba as minhas melhores vibrações. Obrigada por me ajudar nessa cena que montou para vocês; com toda a minha psicologia, eu não teria feito melhor.