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Ana Canosa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bêbado, ele quis bancar o machão. Agora está com medo de ser preso

"Marcelo está se sentindo o último dos homens e sem dormir há dias. Motivo ele tem" - Unsplash
"Marcelo está se sentindo o último dos homens e sem dormir há dias. Motivo ele tem" Imagem: Unsplash

Colunista de Universa

08/07/2023 03h55

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Um paciente meu —vou chamá-lo aqui de Marcelo— pediu uma sessão extra. Algo havia acontecido que ele estava muito mal. Com as mãos segurando a cabeça e olhando para baixo, dizia em voz baixa: "Até agora não acredito no que aconteceu. Estou muito assustado". Me contou envergonhado que bebeu além da conta em uma balada e que teve um apagão: não se lembra de nada, nem de como pegou o táxi para voltar para casa.

A última cena gravada na memória foi a de pagar o taxista com Pix, subir o elevador, entrar no apartamento e se atirar na cama. Mas tinha um hiato de mais ou menos três horas que ele não recordava. "Isso se chama amnésia alcoólica", eu lhe disse, depois de perguntar se ele havia ingerido algum tipo de droga psicoativa ou se alguém tinha batizado sua bebida.

Aparentemente ele foi pego pela ilusão do gim —você vai bebendo, tudo parece controlado, até que está completamente embriagado. Mas, no caso do Marcelo, o mais peculiar foi que uma parte dele parecia lúcida: a que fez o Pix e escreveu mensagens para as crushes no Instagram sem nenhum erro gramatical.

E o conteúdo minha gente? Ele parecia ter sido tomado por algum espírito muito selvagem, enviando convites sexuais, descrevendo todas as práticas que pensava em realizar no ato com cada uma delas, sem que elas estivessem interagindo ou dando trela para o sexting.

Foi invasivo, pornográfico, indelicado, coisa que normalmente ele só faz sóbrio e quando tem intimidade. Ele não lembra em qual momento escreveu aquilo tudo, mas percebeu que tinha algo errado quando, no dia seguinte, entrou no seu perfil do Instagram e as mulheres estavam todas vociferando antes de bloqueá-lo definitivamente.

Ligou para os amigos, que para piorar a situação, lhe disseram que ele tentou passar a mão em uma moça com quem ficou na tal balada, ameaçou tirar a roupa e pulou o balcão do bar para beijar a bartender.

O tal macho escroto tinha surgido dos recônditos do seu inconsciente, mesmo ele não sendo esse estereótipo. Está comigo há mais de um ano e atesto que não é. Mas é, ora bolas, pois machismo estrutural habita as bases da formação identitária dos homens (e das mulheres também, diga-se de passagem).

Foi só o álcool amolecer o seu superego e ele perdeu qualquer compostura de macho consciente. "Estou com medo de ser preso", me disse. Tentei não ser dura, mas lembrei que, embora ele não tenha estuprado ninguém, a cena do crime é parecida com os recentes acontecimentos envolvendo jogadores de futebol. Música alta, bebida, local de azaração, amigos que não intervieram quando o colega estava perdendo as estribeiras. O cardápio de sempre, para dar ruim.

"O que deu na sua cabeça para beber desse jeito, como se não houvesse amanhã, e agir como um adolescente embriagado e cheio de tesão na festa da escola?", perguntei. Sei que pode parecer materno da minha parte, mas tem hora que paciente fica pedindo esse tipo de questionamento.

Avaliamos o quanto ele pode ter sido movido por uma certa afirmação da sua masculinidade, inconsciente, principalmente porque percebia a tentativa de controle de seus desejos por uma crush com quem estava saindo. Combateu a fantasiosa castração ativando a sua metralhadora fálica nas meias dúzias de mulheres com quem estava trocando mensagens e flertes. Caricato, eu sei.

Se há algo que incomoda quem está minimamente tentando ser um ser humano melhor, mais ético e digno é repetir o clichê, se deparando com as suas sombras e fazendo aquilo que critica nos outros. Agora não dá mais para se envaidecer da sua masculinidade desconstruída. O falecido psiquiatra Paulo Gaudencio tinha uma frase sensacional que repito para ele na sessão: "O autoconhecimento é libertador, mas sempre uma má notícia".

Marcelo, além de ter colocado tudo a perder com as suas crushes do momento, segue buscando, nas redes sociais, possíveis provas que possam incriminá-lo —vai que alguém gravou o beijo roubado ou printou as mensagens pornográficas antes que ele as tivesse apagado? Está sem dormir há uns dias, envergonhado, se sentindo o último dos homens. Motivo ele tem.

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