'Terminei por ciúme duas vezes em seis meses; como ter uma relação leve?'
Valéria tem 40 anos, acaba de romper o relacionamento com Sandra, de 34, e está arrasada. É a segunda vez que terminam e pelo mesmo motivo: Valéria gosta de viver relações de maneira livre e não monogâmica. Já Sandra costuma só ter atração sexual por pessoas com quem esteja vivendo uma relação afetiva; por isso não se vê tendo múltiplas parceiras. No início, perceberam o desafio de encontrar um formato. Como se gostam e convivem bem, decidiram enfrentá-lo. Ressalto que estão juntas há seis meses, tempo curto para sedimentar o amor com as raízes que necessitam para enfrentar esse e tantos outros desafios.
Sandra parece viver aquela dualidade entre razão e emoção: a ideia da não exclusividade como uma maneira de viver relações legítimas, sinceras e menos hierarquizadas faz sentido, mas é tomada por emoções negativas quando sente a ameaça de uma terceira pessoa, como a vizinha gentil, um ex-namorado (Valéria já teve relações com homens) ou mesmo uma amiga que a parceira elogie. Elas acabam brigando pelos questionamentos de Sandra, que não os entende como ciúme, mas um incômodo relacionado a suas experiências anteriores. Na tentativa de acomodar os sentimentos da parceira, na melhor das boas intenções, Valéria acaba forçando a barra para ela assumir o ciúme e se conscientizar que ele atrapalha as relações. Mas Sandra sente que Valéria está sendo rasa na sua leitura.
Ciúme passou a ser um sentimento considerado tóxico por alguns, mesmo quando é uma manifestação pueril. Que me desculpem os que acreditam que ciúme é só uma construção social, pois eu entendo que é um sentimento humano, natural, já observável em tenra idade. Ser exclusivo, ter atenção, ser mais amado dos que os outros faz parte de uma etapa do desenvolvimento infantil e que vamos reproduzir vida afora. Ciúme como prova de amor é um equívoco histórico. Você não é um ET contemporâneo se tiver um ciuminho lhe invadindo as ideias.
Há quem diga que uma ponta de ciúme serve como um mecanismo de alerta para o cuidado com as relações, outros apostam que ele pode alimentar o sexo, mas o que é uma unanimidade entre os especialistas é que ciúme é um sentimento do tipo gasolina — se pegar fogo, fica difícil de controlar. Fomentá-lo, ameaçando o vínculo de amor, estabelecer competitividade para que o par fique inseguro e faça tudo para lhe agradar, é um traço de toxidade.
Digo ao casal que Sandra tem o direito de chamar seu sentimento do que quiser. Embora seja um tema importante, a verdade é que a maneira de abordá-lo está desviando a atenção do casal do dilema central da relação — caminhar para um formato que não castre a nenhuma das duas. Não é fácil desenraizar o sentido da exclusividade, ainda mais quando se é uma pessoa que não tem maior necessidade de variação afetiva e sexual. Por outro lado, como encarcerar o desejo de quem sente necessidade de liberdade nesse aspecto?
Como Valéria não teve interesse em ninguém até agora, há uma antecipação do conflito que está por vir. Sandra tem medo de sofrer, apontando possíveis pretendentes, já sentindo de antemão, em pequenas doses. Isso funciona também como justificativa para interromper a relação como um mecanismo de defesa a evitar uma dor maior. Abandono antes que seja abandonada. Valéria, ao temer ser castrada em sua identidade, busca de maneira mais ansiosa convencer Sandra, levantando também um muro entre elas. Será só abraçando a necessidade de cada uma e apaziguando a escolha amorosa de estarem juntas que esse dilema poderá ser desatado aos poucos.
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