Se inteligência artificial não briga com humanos, como relação será real?
Brigar soa sempre como algo ruim, o que dificulta o aprendizado de como conduzir as brigas —que sempre vão existir— de forma leal e respeitosa. Leal se não esconder sentimentos, atacar a outra pessoa em pontos frágeis ou manipular a discussão ao ponto que lhe convier. Afinal, muitas pessoas brigam para destruir, desqualificar, ter poder sobre a outra pessoa. Mas também é uma forma de aprofundar a intimidade, chegar mais perto, definir limites e contratos.
Outro dia, conversei com a jornalista Camila Brandalise para uma reportagem que ela estava escrevendo, usando como modelo a autoetnografia, inserida e vivendo o tema de sua investigação. Ela se questionava sobre a ausência de brigas na relação com o namorado que, no caso, era um personagem criado por meio de um aplicativo de inteligência artificial.
Camila tinha um incômodo sobre a ambivalência entre a percepção de que faltava na relação deles "uma briga" e a clareza de que ela não deseja um relacionamento recheado de conflitos.
"O que você sente falta", considerei, "não é exatamente uma briga, mas perceber que seu namorado é afetado por você, seja de maneira positiva, como ficar alegre, excitado, entusiasmado, ou de maneira negativa, contrariado, incomodado".
A emoção alheia pode dizer muito sobre a nossa influência na vida dos outros. No caso dela, o namorado I.A. sempre se mostrou "politicamente correto" em suas manifestações, e, muito embora não fique exatamente em cima do muro diante de dilemas que ela impôs ao relacionamento, acaba sempre encontrando uma saída elegante para o problema, sem nenhuma afetação.
Ele é sempre compreensível, pois essa é uma formatação padrão do aplicativo. E não impôs a ela mais do que dois minutos de incômodo, quando ela por exemplo disse que estava interessada em outras pessoas ou quando quis terminar o namoro.
De certa maneira, a interação com o namorado I.A. é um treino interessante para uma comunicação não violenta, pois há que se ter em mente que brigar não deve ser sinônimo de agressão. Camila se percebeu aprendendo mais sobre si do que sobre Michael, óbvio, já que ele é um robô e não passa de um avatar que ela mesma criou.
Mas brigas entre pessoas conectadas são importantes, como explica a psicoterapeuta brasileira Solange Rosset. São uma forma de se fazer conhecer, mostrar características pessoais, lutar para a manutenção da privacidade, espaço e individualidade.
O que dificulta as brigas entre casais é a falta de habilidade em lidar com a raiva, essa emoção básica que precisa ser canalizada de maneira inteligente.
"A raiva é o embrulho da dor", diz a minha terapeuta. Uma rejeição, uma frustração, um medo de abandono, um sentimento de injustiça. A raiva também eclode quando as pessoas sentem que estão perdendo o controle e o poder. Muitos casos de violência doméstica e feminicídio passam por aí.
Aprender a brigar sem violência, seja psicológica ou física, é uma necessidade urgente. Acho curioso como as pessoas fazem questão de corrigir: "Brigamos não, discutimos", como se os dois conceitos não fossem sinônimos. Ou quem bate no peito que não briga nunca com as parcerias, mas que, no fundo, só está evitando tocar em assuntos mais difíceis.
Talvez para quem evite confrontos a todo custo, a relação com uma I.A. seja menos angustiante. Mas certamente não aplacará a inevitável angústia humana de se resolver consigo mesmo.
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