Ana Canosa

Ana Canosa

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Pobres criaturas: como viveria uma mulher completamente livre sexualmente?

O filme "Pobres Criaturas" é uma obra-prima, uma fábula para adultos. Baseado no livro homônimo de Alasdair Grey, escrito em 1992, ele mescla símbolos da narrativa de "Frankenstein", mas me pareceu mesmo uma versão atualizada de "A Bela e a Fera", revelando o que aconteceria caso a "princesa" resolvesse viver experiências fora do "castelo" e antes de se casar. Caso ela fosse espontânea o suficiente para dizer o que pensa, o que sente, o que deseja, sem se preocupar com o julgamento alheio. Caso resista em ser repreendida por homens, que teimam em lhe controlar e dizer o que fazer. Caso conseguisse unir a sua potência como pessoa, mantendo a sua curiosidade infantil.

O filme tem elementos da psicanálise, tanto no campo do desenvolvimento da sexualidade, quanto nas formas de vinculação afetiva. Tem a vontade de engolir o mundo, tem controle, tem a tentativa simbólica e literal da castração. Sobre isso, faço algumas observações.

A socialização é importante para o ajustamento social. O desafio do adulto, na educação sexual de crianças, é ensiná-las a postergar uma relação sexual, mantendo a naturalidade da descoberta da sexualidade. Por características da personagem, em "Pobres Criaturas" esse limite está o tempo todo borrado —o que para uma criança pode ser sentido como violência física e psicológica, para uma mulher livre não é a experiência física consentida e autônoma que viola, mas a agressão psicológica da tentativa de contenção.

Ainda sobre a castração, ela aparece também nas personagens masculinas, ora no tutor/pai literalmente castrado e agredido pela figura paterna na infância, ora pelo homem que a deseja, mas que acaba se apaixonando por ela.

Interessante como o personagem Duncan Wedderburn encarna todos os estereótipos do homem sedutor machista e narcisista, que sai da potência para a impotência diante da apropriação que Bella Baxter faz de seu próprio ser desejante. O enredo desvela como as relações amorosas, quando estão atravessadas pela manutenção do poder, perdem a natureza fraterna, a cumplicidade dos amigos que vão usufruir de momentos de prazer. O que era intimidade, vira um campo de guerra, uma luta para que o brilho e a liberdade sejam privilégio de um só. É possível navegar sobre concepções de amor, posse, aceitação, exclusividade sexual e como o formato tradicional de relações entre homens e mulheres pode fazer o desejo minguar.

"Pobres Criaturas" usa a estética e os elementos fantásticos para abordar dilemas e dialéticas da vida. Mostra como, mesmo que as escolhas pessoais sejam difíceis e sofridas, são as únicas capazes de nos individualizar, legitimar vontades e colorir a vida.

Experiências induzidas por terceiros, à revelia, normalmente produzem a palidez existencial. A sexualidade é olhada por diversas perspectivas, mas é bonito e interessante observar Bella se transformando em mulher, como naquela clássica frase de Simone de Beauvoir: "não se nasce, torna-se uma". É tomando as rédeas da própria vida que vira senhora-dona-da-porra-toda, o que a pode levar, também, para escolhas baseadas tão somente em seus próprios desejos, o que a coloca na fronteira da perversão.

Ser adulto é ter consciência sobre o bom e o correto e fazer escolhas, às vezes nada fáceis, convenhamos.

O filme mostra ainda como levamos vida afora as marcas da infância, sejam as boas ou as traumáticas, que nos farão repetir comportamentos e voltar às raízes —aquele momento em que nos pegamos fazendo o mesmo que criticávamos em nossos pais.

Continua após a publicidade

Um filme incrível, com atuações irretocáveis de Emma Stone e Mark Rufallo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes