Ana Canosa

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Opinião

Ele sonha em desfilar com trans: o que falta para realizar uma fantasia?

Dizem que muitas vezes a fantasia pode ser mais interessante que a vivência concreta. Eu diria que, para pessoas com padrões de pensamento rico em detalhes e particularidades, a crença procede.

Claudio é um homem de 42 anos, superinteligente, que adora sexo e está o tempo inteiro flertando com o que poderia ser entendido como comportamento "transgressor". Como ele faz parte do grupo privilegiado - homem branco, hétero, casado, com nível socioeconômico alto - sua fantasia mais divertida é entrar em um restaurante, repleto de colegas do mercado financeiro, de braço dado com uma mulher trans.

O rei dos assuntos polêmicos esfrega na cara dos acomodados que a narrativa heterocisnormativa é chata e quadrada. Ele é uma pessoa estudiosa, que adora ficar pensando em temas complexos que, segundo ele, "não servem para nada", mas lhe dão prazer pela beleza da narrativa bem construída, cheia de causalidade e efeito.

Passamos por dois importantes períodos na terapia:

O primeiro tentando acomodar seus desejos na sua identidade e orientação sexual. A questão passava por ter prazer anal e ter atração por mulheres trans e se isso tinha relação ou não com uma orientação homossexual. Mas Claudio tem atração por mulheres, não por homens e descobrimos que mulheres trans não operadas podem satisfazer dois prazeres: objetivamente a penetração anal, subjetivamente a transgressão à norma.

O segundo momento foi a busca de fortalecer seu sentimento de pertencimento na aceitação de sua esposa, sobre seu desejo e sua curiosidade sexual, e negociar possibilidades sobre práticas sexuais dentro e fora do casamento. Claudio valoriza demais a sua relação afetiva, não gosta de mentir e não tem nenhum interesse na separação. A intimidade emocional deles foi sendo construída nesse campo, Claudio convidando a mulher a ser mais aberta e legitimar a sua "persona" sexual.

Quando finalmente eles decidiram que ele poderia usar um dia de sua atribulada semana para vivências sexuais com outras pessoas, ele passou a se ocupar em pensar sobre os detalhes da experiência. Precisava ser com alguém que gostasse tanto de sexo como ele, mas isso implicava em ter algum conhecimento sobre as pessoas disponíveis - falta tempo e disposição, além do risco de envolvimento.

Os apps de relacionamento funcionam mais ou menos para isso, lhe abrem muitas possibilidades, mas com pouco encantamento. Pagar alguém poderia resolver esses problemas, mas ele tem aquele sentimento de falta de desejo da profissional por ele e pelas práticas sexuais, um sentimento de algo falso e o sexo poderia ser ruim. Buscou algumas mulheres trans no app, disponíveis para sexo casual, mas as achou muito jovens.

Na primeira oportunidade que tinha para sair, usou o tempo do "salvo conduto" para ir a um jantar de trabalho. "Amarelou" - segundo ele mesmo.

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Claudio foi criado em um sistema de punição bastante rígido. Seu pai era pastor e ele apanhou muito quando criança. Como não podia errar e aprender com as situações dilemáticas da vida, passou a criar muitos protocolos para evitar problemas. Ele está sempre avaliando sua saúde, seu desempenho, seu trabalho, faz testes com ele mesmo a fim de evitar grandes riscos. A pornografia foi o lugar seguro que encontrou para vivenciar as "transgressões sexuais".

Ele se ressente por não ser essa pessoa mais ousada, que simplesmente vai lá e faz. Seu forte é a narrativa, e a concretização dos desejos pode simplesmente esvaziar a "graça" do pensamento e de toda preparação. Além disso ele acaba escolhendo a "tradição", embora seja um transgressor nato. É o velho dilema batendo à porta mais uma vez, alimentando ainda mais a fantasia que ele não tem coragem de vivenciar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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