Ninguém está livre de se entediar com a vida. E se fôssemos o outro?
O filme "No Lugar da Outra" é baseado na história real da escritora chilena María Carolina Geel, que assassinou seu namorado, no Chile, em 1955, drama que foi retratado no livro "Las Homicidas", de Alia Trabucco Zerán.
O crime serve como pano de fundo para que Mercedes, a secretária do jurista responsável pela investigação, reveja sua vida e suas aspirações como mulher, diante da opressão machista do seu entorno, que lhe colocam em condição subalterna às vozes masculinas à sua volta.
É na investigação sobre a vida da escritora, que Mercedes revê a própria identidade e encontra uma fresta de liberdade.
Uma fala especialmente me chamou a atenção: "Nós, entediados de sermos quem somos, precisamos de um lugar para não sermos ninguém".
Embora "No Lugar da Outra" trate a temática da perspectiva feminista — quem poderia ser uma mulher, se ela não tivesse que seguir padrões moldados pelo patriarcado — o filme toca a todos nós, na necessidade de sermos alguém diferente do que acreditamos que somos, ora para descobrir universos mais condizentes com a própria natureza, ora para viver experiências que nos enchem de adrenalina e motivação, ou para confirmar nuances e acomodá-las.
Penso que ninguém está livre dessa condição humana de entediamento da própria existência. Mesmo as pessoas mais privilegiadas pela vida e resilientes com os desafios que ela nos impõe — e que não temos o menor controle — podem ser acometidas pela súbita vontade de sonhar com outro lugar.
Em relações amorosas, especialmente, justificamos essa inquietação na "mornitude" do casamento, o que eu penso ser uma grande injustiça já que este desassossego tem origem na própria individualidade e, portanto, é anterior a ele.
Claro que, quanto mais formatada é a vida nos seus papéis culturalmente perfilados, menos espaço para arriscar comportamentos, ousar e satisfazer desejos.
A conformidade das vontades e dos sonhos aparece por todos os lados, o que serve a manutenção ideológica sobre o que é ser feliz ou adequado: os dispositivos culturais encaminham as pessoas para que sejam convencidas de que a felicidade está no lugar do outro — notadamente dos que tem poder e "sucesso" — ao mesmo tempo que fortalecem a disparidade para que esse lugar não seja alcançado, mantendo a falta e o desejo por coisas ou situações pré-fabricadas.
Em No lugar da Outra, esse movimento não é impulsionado pela cultura, mas pela insatisfação pessoal, o que faz toda a diferença no processo de individuação da protagonista.
É o cansaço que nasce das entranhas, da sensação de estranhamento, de estar apartada de uma condição que lhe é dada pelos outros.
Não é fácil nos despirmos de narrativas fortemente interiorizadas, mas a experimentação desse lugar de ninguém — já que não se pode ser o outro — é necessária para que a precariedade da condição humana se apresente.
Grandes transformações individuais só emergem nesse corajoso enfrentamento de crenças introjetadas sobre como devemos conduzir as nossas vidas.
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