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Ana Paula Xongani

Black is King, uma obra de arte, coloca estampa de "oncinha" no lugar certo

Beyoncé e seu figurino de oncinha em "Black is King" - Reprodução/Twitter
Beyoncé e seu figurino de oncinha em "Black is King"
Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

05/08/2020 04h00Atualizada em 05/08/2020 13h38

"Black is King", o álbum visual da Beyoncé, chegou no último dia 31 de julho, mais uma vez abalou o mundo com sua explosão de simbologias, belezas e, principalmente, a celebração das potências dos povos pretos. Uma releitura contemporânea — e preta — do filme "O Rei Leão", da Disney, mescla sonoridades, imagens, cenários inacreditáveis e muita moda. Uma história preta contada de forma única.

Simba, o personagem central da obra que inspira Black is King, é representado por um lindo menino preto. Não à toa, ela dedica o filme ao seu único filho homem, uma delicada tentativa de não mais animalizar, e sim humanizar o homem negro.

A música negra do mundo está lá. A sonoridade que conecta o povo preto com a ancestralidade preta também está. Tem tudo. As locações, em sua maioria, criam cenários inacreditáveis. Belezas naturais mostrando o quanto o mundo não modificado pelo homem é belo.

E a moda desempenhando um papel fundamental, centralizando os olhares, contando história, gerando reflexões e incômodos e, principalmente, sendo o elemento que torna esse álbum uma obra de arte completa e possível, com assimilação imediata para aqueles que se reconhecem nela, o meu povo, o povo preto. Um registro impecável e com boas histórias, tanto no filme propriamente dito, quanto nos bastidores.

Deixa eu te contar um pouco sobre os bastidores de moda de Black is King.

Facilmente, percebe-se que há muita pesquisa de moda em toda as cenas, um trabalho minucioso de representação de algo tão poderoso e grandioso: a África e seus povos pelo mundo, a diáspora. Todo este conceito de moda foi coordenado pela Zerina Akers, que há anos é a figurinista de Beyoncé.

Parceiras que são, já conhecem e reconhecem o talento uma da outra. É de Zerina Akers o moodboard do projeto, ou seja, a personalidade da indumentária em Black is King. Há muito tempo estamos babando na moda que Beyoncé veste e o que isso diz sobre ela. Nesse processo, é importante, justo e fundamental também reconhecer Zerina Akers e seu lindo e impecável trabalho, que vem desenhando a história da nossa rainha Bey.

A moda e o figurino são sempre construções conjuntas. Figurinista e designer, costureiras e toda a cadeia produtiva é o sistema que transforma um projeto em uma realidade visual, tangível e palpável.

E tá aí mais um acerto de Beyoncé e sua figurinista. São muitas mulheres e homens negros convidados para confeccionar a história visual e os looks de Black is King. Numa única pesquisa, encontrei 14 profissionais de moda afro-americanos envolvidos com o projeto.

Vamos dar nome e sobrenome a eles? Vai que em sua própria pesquisa sobre cada um deles, você encontra a referência exata para o que quer expressar na sua moda? Destiney Bleu, Loza Maléombho, Tanaya Henry, Déviant La Vie, Jerome Lamaar, Venny Etienne, S. Garvey, Duckie Confetti, Melissa Simon-Hartman, Adama Paris, Selam Fessahaye, Lafalaise Dion e os irmãos Dynasty e Soull Ogun.

Mais uma vez, Queen Bey nos mostra que UBUNTU, provérbio africano que significa "Sou porque nós somos" pode e deve ser colocado em prática. E, dessa vez, com Black is King, ela praticou ubuntu na moda. Trazer projeção para outros estilistas negros, sobretudo mulheres, é uma escolha de ação de Beyoncé e sugiro que seja nossa também. Para além do reconhecimento fácil e imediato do quanto tudo isso é lindo, te convido a conhecer essas mulheres e homens, seus trabalhos, suas artes.

Para começar, listo aqui meu top 3:

Loza Maléombho

Estilista afro-americana criada entre a Costa do Marfim, país do continente africano, e EUA, na cidade de Maryland. Ela se interessou por moda aos 13 anos, enquanto desenhava para sua mãe suas tias e seus próprios uniformes escolares.

Déviant La Vie

Os vestidos de corda de Black is King são de Déviant La Vie, marca fundada por Brittany Duet e seu parceiro, Murph. A marca é conhecida por looks inspirados em bondage.

5:31 Jérôme

Nascido e criado no Bronx (em Nova York), Jerome Lamaar lançou a 5:31 Jérôme em 2013. A marca mescla o amor por enfeites, maximalismo, glamour e estilo de rua - tudo isso em jogo no híbrido de trincheira. Em Black is King é responsável pelo vestido de renda e seda da Nigéria.

E, ao longo do filme, cada look está dizendo que tem muito a contar. Muitos elementos de moda no filme chamam atenção. São tantas informações em cada frame e cada uma delas transborda em nossos olhos, se conectam objetivamente com nossos conhecimentos, mas também com nossas experiências subjetivas., É fácil sentir, mas pouco fácil de descrever. Mesmo assim, quero destacar alguns pontos marcantes pra mim:

Os bordados macramê e os adornos

As técnicas manuais como os bordados macramé, as confecções de adornos de pescoço com grandes búzios e as cabeças feitas manualmente com pequenas miçangas exaltam a beleza do fazer à mão, técnicas desenvolvidas por vários povos africanos e heranças das confecções negras de hoje em dia. Perceber a força de cada nó, a dedicação de cada miçanga colocada nas peças é reconhecer a grandeza do trabalho manual intelectual, de quem o confeccionou e também a grandeza das técnicas desenvolvidas ao longo dos anos - e que se atualizam a todo tempo.

turbante - Reprodução - Reprodução
Cena do trailer de 'Black is King', filme de Beyoncé
Imagem: Reprodução

Os turbantes

Os turbantes estão mais que presentes. Me encanta como aparecem em uma das cenas iniciais do filme, protegendo a cabeça de uma senhora mais velha na cor branca, mas não só. Em outras cenas do filme, o turbante aparece sempre colocado em mulheres que representam ancestralidade, maternidade, seriedade e conhecimento. Até a forma como Beyoncé amarra a toalha da cabeça é aturbantada, cada detalhe importa, e esse me fez perceber como é possível repensar pequenos detalhes a partir do prisma da cultura negra.

Peles de animais são uma marca do filme

Peles de animais, hoje chamada de animal print são, sem dúvida, uma marca do filme. E elas nos mostram o respeito aos povos africanos e do uso integral dos subsídios oferecidos pela natureza. Não há descarte, há reaproveitamento. Come-se a carne, veste-se o couro e, nas proporções certas, por isso as peles dos animais são oferecidas a reis e rainhas como um artigo raro, de luxo, pouco encontrado.

No filme e também na história da indumentária africana, as estampas ocupam esse lugar de realeza e sacerdócio. Quem aí se lembra delas no filme "Um Príncipe em NY", com o Eddie Murphy, outra obra audiovisual fundamental para nos conectar com a estética cheia de simbologia da cultura africana?

Oncinha e o processo de apropriação cultural

A "oncinha", que passou por um processo de apropriação cultural na moda pela branquitude, que pasteurizou essa estética, arrancou do contexto africano e a aplica indiscriminadamente em outro contexto e sem respeito, gerou uma estereotipação da estampa das onças e dos leopardos, colocados como exóticos, "étnicos" e usada por todos, mas com uma leitura rasa de que África, negras e negros são apenas bichos.

A abordagem que Lili Schwarcz fez em artigo recente evidencia falta de conhecimento sobre a história da estética africana e afrodiaspórica, nos mostrando um olhar esvaziado da braquitude sobre a estampa de onça.

É comum que pessoas brancas só consigam alcançar a história apropriada desse elemento e não sua história real, o que transforma qualquer crítica em argumentação rasa e infundada.

O figurino de Black is King (re)coloca a estampa de "oncinha" no lugar certo e de onde nunca deveria ter saído.

Considerando a ambientação do filme no cenário de Rei Leão, leva a estampa para as savanas, na natureza, no habitat natural desses animais historicamente preservados pelos povos africanos e, sob outra e complementar perspectiva, confere à estampa o lugar de elemento cultural dos povos pretos.

imagem E - Reprodução/Instragram - Reprodução/Instragram
Cena de "Black is King"
Imagem: Reprodução/Instragram

E, por fim, há também a ausência de roupas. Como sabemos, moda é escolha. Inclusive a escolha da ausência de panos, substituídos pelas artes da pintura corporal. É preciso ressaltar que povos africanos, assim como os povos originários das Américas, os indígenas, são mestres nas pinturas corporais, que assim como a moda comunicam, demarcam fatos históricos, lugares sociais e eventos culturais.

No filme, as pinturas são presentes na quantidade certa, um resgate dessa nossa arte, e sim, mais um demarcador histórico da grandiosidade do que Beyoncé propõe com este filme.

Veja, não se trata apenas do elogio pelo elogio em respeito ao monumento que é Beyoncé. Na obra, são muitas grandezas, são muitos os ganhos, são muitas as potências capazes de movimentar o mundo e, com ele, a história de tantos. Isso faz de Black is King mais um lugar de fortalecimento das nossas raízes, do nosso presente e fortalecimento do nosso futuro.

Como já disse no vídeo "Vou te revelar o plano Beyoncé" no meu canal no YouTube, o plano Beyoncé é perfeito. Que bom que hoje ela detém os meios de produção, é a senhora poderosa que decide o que será feito, como será feito e por quem será feito. Esse poder foi conquistado com o tempo, com muito trabalho e acúmulo de consciência.

E o resultado é parte da nossa história sendo contada de uma forma que emociona, impacta, registra e constrói um imaginário poderoso do povo preto para o mundo. Ela mesmo disse: "Acredito que quando os negros contam nossas próprias histórias, podemos mudar o eixo do mundo e contar nossa história REAL de riqueza geracional e riqueza de alma que não é contada em nossos livros de história".

Enfim... mulher negra, né? Nada mais a dizer.