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Ana Paula Xongani

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mayara Lima, a princesa da Tuiuti, já é o grande marco do meu Carnaval

Mayara Lima viralizou em vídeo sincronizado com bateria da Paraíso do Tuiuti - Reprodução
Mayara Lima viralizou em vídeo sincronizado com bateria da Paraíso do Tuiuti Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

14/04/2022 04h00

Não é de hoje que os questionamentos sobre a discussão entre a beleza da "festa popular" do Carnaval e da força avassaladora do capitalismo são pautas sobre este evento, um dos mais esperados todos os anos, que é o Carnaval do Brasil.

Essa é uma conversa recorrente e tem muitos muitos vieses, tanto sobre as pessoas que hoje realmente fazem esse Carnaval do sambódromo acontecer, ali, mão na massa, quanto as pessoas que gerenciam esse Carnaval, que colocam o dinheiro que circula, as marcas da publicidade, a moda, as roupas né?! Qual a comunidade que ainda está sendo preservada para representação dessa festa popular? Etc etc etc.

Porém, à parte, ou não tão à parte assim, considero que em 2022, esse ano aqui, a gente tem um marco. Um marco que eu considero uma contranarrativa da resistência do povo preto diante do que é o Carnaval hoje: Mayara Lima.

Um breve contexto: Mayara é princesa da bateria da Paraíso do Tuiuti, escola de samba que tem origem no Morro do Tuiuti, bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Desde os 14 anos ela samba na comunidade (já passou também pelo Salgueiro), ela é "cria da comunidade", como dizem. E ganhou enorme protagonismo depois de um vídeo que viralizou, em que ela dançava com uma "sincronia de milhões" entre a dança e a melodia da bateria. Uma jovem negra, importante pontuar, numa escola de samba em que ela é a princesa. Mas a rainha é uma mulher que está lá a partir de outra lógica, a lógica do mercado, pagando para ocupar este espaço.

Essas vendas no Carnaval, que acontecem de forma diferente nos carnavais Brasil afora, essas concessões, têm um prejuízo que merece ser observado para além da questão financeira, afinal não estou aqui para elaborar como chegamos até este cenário e muito menos o que significa o Carnaval seguir existindo desta forma, apesar de tudo, para tantas famílias que tem na festa o seu trabalho.

Tem um prejuízo social, cultural, do patrimônio histórico que o Carnaval carrega.

Aí, quando assisti a esse enorme protagonismo da Mayara, o crescimento viral de sua dança, ela ser ovacionada nos ensaios seguintes, considerei esse "movimento" um questionamento, quase um levante, no sentido do resgate dessa memória, a quem pertence, ou deveria pertencer, este lugar.

Se a gente observar a trajetória das passistas, porta-bandeiras e outros papéis desempenhados por dançarinas da comunidade ao longo da história das escolas, dia a dia mesmo, e notar o empenho, a dedicação física, emocional e financeira, de recursos materiais e imateriais, não fica difícil imaginar o quanto de comprometimento e expectativa existe para o dia do desfile.

O quanto tem de investimento da criatividade destas mulheres - e de outras da escola, costureiras, muitas delas pretas, por exemplo - na criação e produção dos figurinos, dos looks de cada ensaio? É muito intenso.

Se a gente pensar em todo esse "investimento", é muita riqueza e, da forma que vemos a coisa toda funcionar hoje, chega uma pessoa de fora e faz um aporte para estar presente neste dia pontual, num período específico. Percebem o desequilíbrio, a desproporcionalidade? A diferença entre alguém que paga para estar ali com toda uma galera que faz disso sua história, sua memória?

Então, pra mim e para muita gente, a Mayara Lima é um marco. Um lugar de observação sobre este mar de contradições que o Carnaval brasileiro traz, que é sobre resistência sim, mas é também sobre processos de invisibilização.

Mayara me fez sentir aquele gostinho das coisas que escapam, mas mais cedo ou mais tarde voltam para seu lugar, sabe? Pois bem, esse sentimento. Quando ela é ovacionada e ganha esse protagonismo, é como se, apesar de todos os atravessamentos, do capital, da branquitude, da desigualdade financeira e tudo o mais, as coisas se encaminhassem para estar em seus lugares. Sim, vamos falar sobre utopias.

Estamos há uma semana do Carnaval e eu desejo que no sambódromo, lugar construído para receber a festa, a voz do povo, que é a voz das divindades todas, clamem por Mayara, a princesa que ganhou o status, a credibilidade, admiração e força de uma rainha. A princesa que faz da sua presença um legado de beleza e transformação na história da sua comunidade.