Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Misoginia como política: não podemos naturalizar o ódio contra as mulheres
"Autorizo o presidente a te matar em uma cadeira elétrica, comunista puta", dizia um comentário em minha recém-aberta conta do Instagram há algumas semanas. Em um momento de otimismo, imaginei que poderia deixar o perfil público, já que eu só falava de trabalho. Durou pouco.
Já perdi as contas de quantas vezes apaguei meus perfis nas redes sociais por invasões, ameaças e comentários de ódio — e também não me lembro exatamente quando decidi não postar mais nada muito pessoal. Acho que foi por volta de 2017, quando vi minha cara e a de pessoas que eu amo estampando um "dossiê" feito por grupos de extrema-direita que classificava, a partir de posts, fotos, comentários e curtidas em redes sociais, nosso "nível de periculosidade". Um esquema sofisticadíssimo de análise, como se pode notar.
Eu não leio comentários de ódio nas minhas reportagens e colunas e não destrincho as ondas de ataques no Twitter. Voltei às contas privadas nas outras redes sociais e ainda assim, de uma forma ou de outra, o chorume chega a todas.
Digo a todas porque dados e pesquisas mostram que mulheres na política, jornalistas, feministas, pesquisadoras, cientistas, são sempre as mais atacadas e de maneira mais cruel, sexista e misógina. Muitas inclusive tiveram que deixar o país após a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), porque foram ameaçadas de morte.
E um levantamento da Abraji (Associação Brasileira de Jornalistas Investigativos) publicado no último mês mostrou que não apenas o linchamento virtual mas também agressões físicas a jornalistas mulheres seguem crescendo. "Em 2020, 44% dos ataques registrados que tiveram uma mulher como vítima eram relacionados a ameaças, agressões físicas ou verbais, destruição de equipamento ou obstrução de seu trabalho. O caso mais recente ocorreu com uma repórter que foi agarrada pelo pescoço durante uma confusão pós-jogo pelo campeonato piauiense de futebol".
A publicação lembra ainda o caso da jornalista da Folha Patrícia Campos Mello, emblemático já que a onda de ataques partiu do próprio presidente da República e de seus filhos, de Carla Vilhena e Daniela Lima, da CNN, de Juliana Dal Piva, colunista do UOL — atacadas recentemente durante a cobertura da CPI da Covid.
Mas, em uma rápida conta mental, consigo pensar em muitos outros, como as ameaças à repórter do UOL Marie Declercq (que na época trabalhava na Vice) e à blogueira Lola Aronovich por denunciarem grupos de incels (celibatários involuntários, que costumam pregar ódio à mulher), às jornalistas da Agência Pública, da Agência Lupa e tantas outras.
O mais assustador é que vamos naturalizando esses ataques, como disse a ex-deputada federal e ex-vice-candidata à Presidência Manuela d'Ávila (PCdoB-RS) em entrevista ao programa "E aí, Beleza?" que foi ao ar em Universa nesta quarta-feira (16).
Alvo permanente de campanhas de ódio, Manuela passou recentemente por um novo episódio horripilante em que o pai de uma colega de sua filha de apenas cinco anos fotografou a criança sem permissão e distribuiu a imagem entre grupos neofascistas e de extrema-direita, indicando uma possibilidade de acesso para que ela fosse ser estuprada.
Na entrevista, Manuela diz: "Cada vez mais a política é um ambiente em que o ódio às mulheres é naturalizado" e coloca que a misoginia tem sido força central de construção desse plano de governo, que começa em 2015.
Nós somos as inimigas. E isso, diante das tragédias de todos os dias, das mortes por covid-19, por violência policial, pelo racismo estrutural, pela LGBTfobia, pelo genocídio indígena, pelos abusos sexuais contra crianças e adolescentes, o aumento da fome, do desemprego, da crise econômica, dos retrocessos e desmontes nas políticas públicas, vai sendo naturalizado.
Me lembro que em uma entrevista a um veículo alemão em 2019, a jornalista me perguntou: "Como vocês aguentam? Como conseguem continuar trabalhando?", e eu respondi que, na verdade, não tinha nada de heroico nisso.
Somos mulheres, vivemos aqui, estamos na linha de frente, resistir a essas formas de intimidação e continuar com nosso trabalho é, no fim das contas, lutar por sobrevivência — a nossa e a das nossas. Como disse Manuela, nossas ideias são à prova de balas. Porque precisam ser.
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