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Andrea Dip

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bolsonaro cria Dia do Nascituro: pauta antiaborto não é cortina de fumaça

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) com a neta Geórgia, filha do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) - Reprodução/Twitter
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) com a neta Geórgia, filha do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista de Universa

23/07/2021 04h00

Sim, Bolsonaro encaminhou ontem (21) ao Congresso um Projeto de Lei para criar o Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto, em aceno à sua base religiosa e ultraconservadora. E sim, ele faz isso em um momento que sua popularidade cai e o país vive profundas crises sanitária, econômica e política e ele precisa "mostrar serviço", desviar a atenção e pautar a imprensa.

Mas essa estratégia não é um fim em si e esse projeto não pode ser encarado de forma simplista. Primeiro porque não se trata de algo simbólico: caso um dos muitos PLs que determinam que o feto tem direitos desde sua concepção seja aprovado no Brasil, milhares de mulheres e meninas que engravidam ao serem estupradas, serão obrigadas a carregar e parir o fruto dessa violência.

Estamos falando de um país que teve, em 2020, 53% das vítimas de estupro entre meninas de até 13 anos, segundo dados recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Caso o embrião ganhe poderes políticos, como pedem alguns desses projetos, serão proibidas pílulas do dia seguinte, mulheres terão que carregar fetos sem cérebro durante nove meses e levar a termo gestações mesmo que coloquem em risco suas próprias vidas.

O PL 2.893/2019 da autoria dos deputados bolsonaristas Chris Tonietto (PSL-RJ) e Filipe Barros (PSL-PR), por exemplo, sugere que "em caso de gravidez nas trompas — que pode levar à morte da mulher —, os médicos devem esperar a criança morrer naturalmente. "Quando ela [a gestação] evolui para a ruptura tubária, pode-se esperar para intervir imediatamente após a ruptura a fim de estancar a hemorragia", como mostramos em uma grande reportagem publicada na Agência Pública nesta quarta-feira (21), sobre o avanço recente e acelerado da pauta antiaborto no Congresso e no Executivo.

A proposta de Bolsonaro não pode ser apontada como "cortina de fumaça" na medida em que reforça a ideia de projetos que, além de criminalizar os poucos casos em que o aborto é hoje permitido por lei no Brasil, agravariam ainda mais o alto número de mortes e prisões de mulheres — em sua maioria mulheres negras — por abortos inseguros ilegais.

O aborto inseguro (realizado na ilegalidade e de maneiras precárias) está entre as cinco principais causas de mortes maternas no mundo, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), e é uma das únicas que poderiam ser evitadas. É sempre importante lembrar que nos países em que o aborto é descriminalizado, junto a políticas públicas e programas de acesso ao planejamento reprodutivo, as taxas de interrupção de gravidez e de mortalidade de mulheres caem.

Dito isso, é preciso ressaltar que a tentativa de Bolsonaro no sentido de oficializar o 8 de outubro como "Dia Nacional do Nascituro" — data que já existe para a Igreja católica no país há muitos anos apesar de ser comemorada em outros países em março — está em consonância com uma onda reacionária antidireitos reprodutivos que atinge não apenas o Congresso e o Executivo brasileiros, mas o mundo todo.

No vídeo que anuncia o projeto, ao lado do presidente, a ministra Damares Alves segura um feto de borracha nas mãos e diz que o ato "é um avanço na proteção da família e na proteção integral da criança".

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Em vídeo, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) assina projeto que cria o Dia do Nascituro ao lado da ministra Damares Alves
Imagem: Reprodução/YouTube

E como mostramos na reportagem da Pública, só no primeiro semestre deste ano, enquanto a pandemia de coronavírus se agravava no Brasil, ao menos 484 proposições legislativas sobre direitos sexuais e reprodutivos foram apresentadas, segundo dados do Centro de Estudos Feministas e Assessoria (Cfemea) obtidos em primeira mão.

Ainda no fim do ano passado, a advogada e Secretária Nacional da Família Angela Gandra (irmã de Ives Gandra Martins Filho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho, e filha do advogado Ives Gandra Martins, os dois ligados à Opus Dei) também esteve na Polônia financiada pela organização ultraconservadora Ordo Iuris (criada a partir da organização brasileira TFP) para falar em uma conferência antiaborto, representando o ministério de Damares.

E a própria ministra, que sempre se declarou contra a interrupção da gravidez em qualquer situação e uma entusiasta do estatuto do nascituro e da "bolsa estupro", como é chamado o projeto de lei que prevê dar um salário às mulheres que tiverem os filhos do estupro, tem participado de encontros e assinado compromissos com governos e organizações ultraconservadoras do mundo todo.

Como me disse certa vez o pesquisador Neil Datta, que investiga as alianças antigênero e antiaborto em entrevista, o mundo vê hoje a ascensão de uma nova geração de organizações e políticos ultraconservadores antigênero que têm se aliado e o Brasil tem se inserido fortemente nesse contexto.

Com seu projeto, Bolsonaro acena para muito além de sua base conservadora. E na mira estamos todas nós.